O reencontro – 10.º B (1991/92) e 11.º B (1992/93)

8h da manhã.
A minha mais velha, a Rita, acaba ainda de lavar os dentes e o Tiago vai enfiando os últimos livros na mochila enquanto ouço o som do motor do carro da minha irmã a aproximar-se. O mais novo, esse, tem a sorte da escola ser ainda próxima de casa e de começar um pouco mais tarde.
Enquanto aceno à minha irmã e os vejo perderem-se no horizonte fico sempre a matutar porque não preferem ir de autocarro. Talvez não saibam como era no nosso tempo. Um dia hei-de dizer-lhes que a minha escola começava muito antes de entrar no recinto. Não sei se eles vão acreditar, mas vou dizer-lhes que começava ao som do rádio. Isto já depois de ter subido ao combro do campo junto à serração da Barroca porque os camiões ocupavam a estrada dificultando a passagem. E o tempo era precioso demais para se perder pois o autocarro parecia andar sempre regulado para aparecer 1 minuto antes da minha chegada à paragem e que era quase sempre feita a correr. Mas o início do ritual diário tornava-se oficial já em pleno autocarro, sempre apinhado de gente, ao som do “Despertar” apresentado pelo António Sala e pela Olga Cardoso. Dessa forma, estava oficialmente aberto mais um dia de aulas.
Os meus 10.º e 11.º anos foram particularmente felizes porque não pertenci a uma turma. Pertenci, isso sim, a uma família. Das que se dão bem, saliente-se. Éramos muito unidos. 
Vendo as coisas de forma mais lúcida e a esta distância temporal, sei que era com estes que gostaria de voltar a pisar o campo de futebol ou a dar uso às enxadas da escola em mais uma aula de Produção Vegetal. Era com estes que eu gostaria de voltar a planear as mais imprevisíveis formas de usar “copianços” nos testes ou de me sentar no bufete a jogar uma suecada. Com estes, sempre estes, voltaria a amar a mesma menina em segredo com a cumplicidade das colegas da carteira da frente. Voltaria a fazer tudo desde que fosse novamente com estes.
Passaram 30 anos.
Algumas destas caras nunca mais as tinha visto. Mas o dia 4 de agosto de 2023 ficou na história. O dia do reencontro. Dos abraços apertados. Um a um fomos chegando ao local previamente combinado. A cada chegada abria-se um par de braços e rasgava-se um sorriso. Dos grandes. Porque esse tempo estava lá longe, mas as boas memórias eram mesmo aqui ao lado.
A Amélia continua com a voz meiga e um olhar a lembrar a outra Amélia, a dos “olhos doces” cantada pelo Carlos Mendes. O Carlos apenas perdeu o cabelo, o resto continua lá. Sobretudo as lembranças da sua Aprilia e das chegadas à sala de aula mesmo em cima do 2.º toque. O Nepinhas continua a trazer sempre no bolso a piada certa para dizer na hora exata. E isso dá-lhe ainda mais graça. O Neno continua a transportar consigo a bondade e o carisma próprios do líder natural desta turma. O Bruno continua a ser o amigo que todos gostaríamos de ter, mesmo que o cabelo já comece a aparecer, aqui e ali, pintado de branco. A Rosário continua como se o tempo não tivesse passado por ela o que acaba por não ser muito justo já que o espelho, a mim, está sempre a devolver-me uma quantidade enorme de rugas... Eheheh! Mas, adiante... O Freitas era uma das presenças mais aguardadas da noite por ser, de todos, aquele de quem menos sabíamos. E 30 anos não são 30 dias. O timbre da sua voz é inconfundível. Com ele trouxe-nos histórias fenomenais de uma vida preenchida pelos vários cantos do mundo. Nome de código: “Miami Beach”... Ahahah! O Pedro Alexandre continua mais reservado, mas sempre a alinhar com tudo o que se decide fazer. O outro Pedro, o Cereja, sempre bem disposto. A justificar ter sido também um dos principais impulsionadores deste reencontro. O Vítor trouxe também as suas histórias de vida tendo sido um prazer enorme revê-lo passado tantos anos. O Paulo continua também com a sua forma inspiradora de ser e relembrou alguns episódios que estavam já um pouco turvos na minha memória, nomeadamente na disciplina de Francês. Bons tempos. E, claro... Todas as turmas têm de ter uma Teresa. Nós temos duas. Até nisso nos destacamos. A alma, o riso e muito do que aconteceu neste jantar, tem o selo das duas Teresas. Sou um privilegiado.
O jantar foi bem regado, cheio de boa disposição e com muitas aventuras novas a juntar a tantas outras dos tempos do liceu. Correu tão bem que no fim do repasto ainda houve tempo para visitar o “Cheiro Verde” para a rodada final. Todos concordamos em repetir a dose lá para dezembro ou janeiro, se possível também com alguns dos que não conseguiram estar presentes neste primeiro reencontro.
Voltei para casa de coração cheio. Continuamos uma família. Há tanto de bom para contar aos meus filhos. Talvez eles passem a preferir o autocarro.
Há um filme de 1986 onde o Richard Dreyfuss, na parte final, diz a seguinte frase: “Nunca mais tive amigos como quando tinha 12 anos. Mas será que alguém tem?”
Vem mesmo a propósito. Encontramo-nos no próximo jantar.
Até já.

Miguel Brandão

Portugal - Marrocos e a minha 4.ª classe

 


Hoje, às 15h00, Portugal e Marrocos encontram-se no Campeonato do Mundo de futebol para decidir quem irá jogar as meias-finais. Assim que este encontro ficou decidido, assaltou-me uma memória de infância que partilhei com o meu pai. Na verdade, a primeira vez que me recordo de um Portugal - Marrocos corria o ano de 1986 e tratava-se de um encontro decisivo para a passagem da fase de grupos do Mundial de 1986 realizado no México. Nessa altura era apenas a segunda participação de Portugal num torneio tão importante, mas, como hoje, Portugal era favorito. Mesmo assim, acabaria por ser eliminado depois de uma inesperada derrota por 3-1, nada valendo o tento apontado pelo Diamantino, um dos meus ídolos de infância.
Mas não é esta a memória que quero partilhar convosco. O que vos queria dizer é que em 1986 eu andava pela 4.ª classe e o meu professor da escola primária era precisamente o meu pai. No dia seguinte à derrota de Portugal com Marrocos, o meu pai escreveu no quadro o título de uma composição para todos os alunos fazerem. E ao voltar para a secretária vinha com um sorriso muito particular (e que me é muito familiar) estampado no rosto. O título era: "Portugal-Marrocos".
Há dias, ao contar este episódio ao meu pai ele já não se recordava. Eu disse-lhe que ia procurar os meus cadernos da escola primária pois tinha a certeza absoluta de tal memória. Pois bem, é a foto dessa composição, do meu caderno de 1986, que hoje vos deixo. Até eu estava bastante curioso para perceber o que tinha escrito. Quando levei o caderno ao meu pai ele ficou admirado por eu ainda ter na minha posse, em forma escrita, tão doces lembranças. E sorriu enquanto eu lhe ia lendo a minha composição. Acabei por não lhe dizer, mas enquanto procurava o caderno sem saber ainda se seria bem sucedido (apenas na questão de encontrar o caderno, porque a memória, para mim, era bastante clara) só me assaltava um pensamento que repetia para mim vezes sem conta: "quase que podia jurar que a composição foi escrita numa quinta-feira". Escusam confirmar. Eu próprio já o fiz. Sim, foi numa quinta-feira.
Um dia ainda hei-de perceber como é que o meu cérebro arquiva estas memórias de infância tão boas. Ainda bem que o faz.
Aqui fica o texto. Não vale rir.
Se quiserem ver com a minha caligrafia original basta clicar na imagem.
E boa sorte a todos para o jogo de hoje, às 15h00.


Redacção
Portugal-Marrocos

Portugal -1- Marrocos - 3 -.
Quem marcou o golo de Portugal foi Diamantino. Portugal teve dois penaltys roubados. Havia um jogador muito perigoso do Marrocos que se chamava Bouderbala. O número 17 do Marrocos marcou os dois primeiros golos e o número 9 marcou o terceiro. Eu acho que o Sousa foi o que jogou melhor na equipa Portuguesa. Adeus Mundial 86.
Rossas, 12 de junho de 1986
Rui Miguel Soares Brandão

Houve um tempo...

 

Houve um tempo em que eu era pequenino.
Houve um tempo em que os amigos eram mais do que os dedos das mãos.
Houve um tempo em que o recinto da escola primária tinha todas as brincadeiras à nossa espera.
Houve um tempo em que existia um grupo coral dos mais pequeninos.
Houve um tempo em que havia o teatro dos mais pequeninos.
Houve um tempo em que havia o Grupo Cultural e Recreativo de Rossas a ensaiar na casa do Sr. Ferraz.
Houve um tempo em que se cantavam os Reis.
Houve um tempo em que existiu um orfeão em Rossas.
Houve um tempo em que se jogava futebol no campo do parque.
Houve um tempo em que havia um clube de vídeo.
Houve um tempo em que se gravavam os videoclips do Top +.
Houve um tempo em que se jogava bilhar no Cheiro Verde.
Houve um tempo em que se faziam chamadas da cabine telefónica junto ao sítio das "regueifeiras".
Houve um tempo em que se aprendia música onde agora é a biblioteca municipal.
Houve um tempo em que o meu pai tinha um toyota corolla e o teu pai uma renault 4L.
Houve um tempo em que existiu um grupo de jovens.
Houve um tempo em que se cantou em festivais.
Houve um tempo em que se cantava no grupo coral mais crescido.
Houve um tempo em que o liceu era uma segunda casa.
Houve um tempo em que se andava de bicicleta.
Houve um tempo em que se jogava Commodore Amiga.
Houve um tempo em que se apanhava o autocarro das 8h20 para S. J. da Madeira para comprar jogos.
Houve um tempo em que se ia ao Porto ao cinema.
Houve um tempo em que se passavam as tardes de férias (como a de hoje) na serra com os amigos.
Houve um tempo em que os amigos já não eram mais do que os dedos das mãos.
Houve um tempo em que deixaram de ser precisas as duas mãos.
Houve um tempo em que deixei de olhar para as mãos.
Houve um tempo em que, por opção, deixei de crescer.
Houve um tempo em que a amizade era feita de presença.
Houve um tempo em que a amizade era feita de pertença.

Tudo tem um tempo. Este é o de te dar aquele abraço como faço todos os anos.
Este é o tempo. Enquanto as forças não me faltarem, nunca passará.

Poderia dar-te um abraço daqui até à Holanda.
Permite-me que me estique um bocadinho mais. Um abraço apertado, daqui até à infância.

Schmeichel (eu lá saberei porquê)

D'Artacão e os Três Moscãoteiros - 29 de julho nos cinemas

 

No próximo dia 29 de julho vai estrear nos cinemas portugueses um filme do D'Artacão.
Andava ainda na escola primária quando o D’Artacão aterrou na RTP1. Na altura, fui alertado para a qualidade da série pelo Eduardo, meu grande amigo de infância. Os episódios passavam aos sábados ao início da tarde, precisamente no mesmo horário em que o meu pai abria a biblioteca escolar para todos os meninos que quisessem requisitar livros para ler em casa. Uma das vantagens de ser filho de um professor foi ter conseguido que o meu pai alterasse o horário de atendimento para que assim eu e todos os meus amigos pudéssemos ver o nosso novo herói sem prejuízos das nossas leituras extracurriculares.
Lembro-me de sofrer verdadeiramente com todo o desenrolar da história. Qualquer armadilha ou imprevisto quase me fazia chorar tal era a minha identificação com os heróis da série. Quem não se lembra do colar de pingentes de diamantes, do Falcão Azul (adorei o episódio em que apareceu; a voz do António Feio ainda ressoa no meu cérebro), ou daquele episódio em que após várias provas D’Artacão quase se tornou Moscãoteiro (fiquei tão triste quando não conseguiu)?!
No antigo quiosque de baixo comprei algumas saquetas (poucas, pois os meus pais nunca foram de alimentar esses pequenos vícios) onde vinham uns autocolantes circulares, uma chiclete e ainda um pequenino boneco pela modesta quantia, creio, de 5$00. Lembro-me do meu amigo Eduardo ter ido a minha casa num fim de tarde apenas para me mostrar um soldado que lhe tinha saído numa das carteiras. Que memórias tão boas. Na verdade, esta série, para além de toda a nostalgia, recorda-me muito a turma de alunos da minha mãe, em particular os bons amigos Eduardo e Paulo Daniel. Motivo mais do que suficiente para querer ver este filme que estreia já no próximo dia 29 de julho.
Quem não sente já saudade do Pom, do Mordos, do Dogos, do Arãomis, do Richelião, do Conde de Rocãoforte (mais conhecido como Bigode Preto), do Senhor de Treville, da Julieta, do Rofty ou do Widimer?
Pelo que vejo na internet, a banda sonora composta por Guido e Maurizio de Angelis está ainda mais refinada, superiormente interpretada por uma belíssima orquestra.
Vou preparar as pipocas e já venho.
Mais alguém com saudades de um filme assim?

45 Anos - My Back Pages

Quando eu era pequenino, havia uma coisa a que os adultos chamavam infância. 
Em casa, o ídolo de sempre era o meu irmão. Com ele jogava à bola no corredor de casa, mesmo levando uns ralhetes da minha mãe. Ou fazíamos autênticas finais europeias onde os jogadores eram peças de xadrez e as balizas feitas de pequenos legos. Aprendi a explorar a capacidade inventiva. As minhas irmãs também me mimavam muito por ser o mais novo pelo que as minhas memórias são as melhores possíveis. Era o tempo da cassete com música da Banda Musical de Arouca que a minha irmã Isabelita colocava no gravador ou da leitura apressada da revista “Juvenil” que chegava pelo correio para a minha irmã Cristina. Gostávamos de fazer muito em conjunto. Uma das partes preferidas da casa era a gaveta onde o meu irmão guardava as cadernetas de cromos que, de vez em quando, me autorizava a consultar na sua ausência. Lá se viam os ídolos da equipa principal do Benfica, o Ruy o Pequeno Cid ou os aviões saídos dos invólucros das chiclas “Pirata”. Era o tempo dos serões à volta da fogueira, a confraternizar, sentado no colo da minha mãe ou a jogar à bisca dos três com o meu pai. Rezava-se o terço e depois via-se a telenovela, o Poirot, o Raio Azul, os Soldados da Fortuna ou o 1,2,3 onde esperávamos com alguma ansiedade as rábulas do saudoso Fininho e ficávamos a torcer pelo Arnaldo e pela Rosete enquanto o Carlos Cruz dizia o célebre “e ainda”...
Felizmente, o recinto da escola primária era ali mesmo ao lado. Era lá que se juntavam amigos de todos os lugares da freguesia ao final do dia. Era o tempo dos treinos para as corridas da Festa de Nossa senhora do Campo. Dos lados das Senras e da Portela, chegavam a trazer estacas de madeira com pregos onde se colocava um foguete que servia de vara a transpor. Era assim que jogávamos ao salto em altura como se fôssemos autênticos atletas olímpicos. Uma forma de termos ali mesmo ao pé o Fernando Mamede, a Rosa Mota ou o Carlos Lopes que nos faziam ficar colados ao pequeno ecrã. Ainda trago na memória os arcos que adornavam os dias de festa e que eram deixados junto ao muro da escola com cerca de uma semana de antecedência. Para nós isso era ótimo pois funcionavam como um verdadeiro escorrega.
Era também o tempo da mudança de casa (a distância, felizmente, era mínima) e das finais europeias do meu Benfica, aí já no ciclo preparatório, onde vivi o meu primeiro amor, com troca de bilhetinhos, cuja interlocutora ainda hoje me desperta uma enorme afeição.
Depois haveria de chegar a adolescência e também o ZX Spectrum e o Commodore Amiga. Memórias inapagáveis de bons amigos e de deliciosos momentos passados em frente a um monitor. Num dos aniversários os meus pais compraram-me uma bicicleta, que ainda existe e que ainda hoje guardo como um dos presentes preferidos.
Era o tempo dos ensaios de teatro, do grupo coral dos mais pequeninos, do grupo de jovens e das aulas de piano em São João da Madeira aos sábados.
Depois vieram tempos muito difíceis na universidade atenuados pelas memórias únicas da minha primeira namorada. Primeira e última, acrescente-se. A verdade é que já vamos em 25 anos e eu continuo a apaixonar-me todas as manhãs.
Vieram ainda idas em conjunto a França, à Alemanha, a Espanha, entre passeios, atividades e festivais com amigos que jamais esquecerei.
Depois vieram os filhos. O melhor que me poderia acontecer. A quem tento deixar o exemplo, mesmo não tendo o engenho. E que anseiam por um pai que consiga passar mais tempo em casa. Será, de coração, a minha próxima missão.
Os tempos mudaram. As responsabilidades aumentaram. Talvez por isso é que Deus nos põe esses novos desafios quando já estamos nos 45. Para sermos capazes de os concretizar.
Hoje festejo 45 anos de gratidão. Já não tenho a força da juventude para tocar várias violas ao mesmo tempo. Que eu saiba discernir o pouco que ainda serei capaz de dar. A inspiração chega através do Bob Dylan e de uma canção que ouvia muito na minha adolescência: “My Back Pages”.
Aqueles dois versos não me saem da cabeça. São eles a minha motivação.

“Ah, but I was so much older then
I’m younger than that now”


Um abraço sentido a todos os meus amigos. Obrigado por esta linda viagem.

Miguel

A estrada velha

 

As lições ou exemplos de vida que nos são deixados pelos pais nem sempre se apresentam na primeira pessoa. Muito menos de forma direta. Aparecem nas entrelinhas dos que sabem estar atentos. Nunca falei com o meu pai sobre algo que deixou em mim e que recordo (e uso) frequentemente na minha vida. Tem a ver com as idas ao Porto durante a minha infância. Não foram muitas as viagens mas, sempre que nos deslocávamos ao Porto, o meu pai escolhia sempre a estrada velha. “Por São João era melhor”, insistia eu repetidamente. Mas o meu pai escolhia sempre ir pelo fundo do concelho passando por Lourosa. Pelo caminho, ao volante do saudoso toyota corolla branco, ia apontando casas de colegas seus ou da minha mãe e recordando histórias da sua juventude no mesmo percurso que nessa altura era percorrido pela Feirense até ao Seminário de Vilar. Só alguns anos mais tarde interiorizei o valor deste gesto. As idas eram ao Porto, mas as viagens eram sempre ao passado, aos amigos que sabemos já não rever, aos lugares e às pessoas onde, a certa altura e num certo tempo, deixámos o melhor de nós mesmos.
Estás de parabéns, Pedro. Esta é a forma que hoje escolhi para te abraçar.
A variante é o caminho de todos os dias para o trabalho, mas hoje queria dizer-te que vim pela estrada velha. Há coisas que estão diferentes. Há lugares mais arranjados e passeios e parques a tornar o caminho mais bonito. Há mais carros e, vê lá tu, até as pessoas parecem mais. Há ainda muito de bom para apreciar e onde nos podemos perder. Mas não me sai da cabeça as vezes que vínhamos dos ensaios da banda no carro do meu pai, tanto os da tarde como os da noite. Há muita amizade escrita ao longo desses 7 km de estrada num tempo onde ainda éramos pequenos e os outros é que estavam obrigados a ser grandes.
Hoje não me vou alongar, amigo. Bem sabes que escreveria 100 páginas de um só fôlego para festejar este dia. Não vai ser o caso. Queria apenas que soubesses que vim pela estrada velha. Foram 10 minutos. Foram mais de 40 anos. É uma eternidade.
Hei-de ser criança até o dia em que a morte me levar.
Parabéns.

Two roads diverged in a wood, and I
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
            The Road Not Taken, Robert Frost

Filho, não trazes, por acaso, uma faca?

Olá mãe.
Hoje estás de parabéns. São 80 anos, uma idade bonita, a condizer contigo.
O dia amanheceu bem cedo e, à hora habitual, lá estava eu juntamente com os meus irmãos para te ajudarmos a levantar e te darmos o pequeno-almoço. Um ritual que se repete já perdido no tempo e que hoje em tudo foi igual. Ou por outra, quase tudo... Porque ao despedir-me, mesmo sem que ninguém notasse, toquei um bocadinho mais na tua mão.
Foi guiado por essa mão que entrei pela primeira vez na escola primária onde me apresentaste os amigos Eduardo e Paulo Daniel. Não eram uns meninos quaisquer. Eram amigos bons que se tornaram pessoas boas cujo percurso vou acompanhando à distância e que me fazem constantemente lembrar de ti.
Foi também guiado por essa mão que saía de casa aos domingos pouco depois das 7h da manhã a caminho da igreja. Quando comecei a tocar os primeiros cânticos, nas manhãs de inverno, carregavas tu os livros para que pudesse conservar as minhas mãos quentinhas dentro dos bolsos e não me atrapalhar quando chegasse a hora de tocar. Nos dias de hoje, a cada domingo que passa, de cada vez que abro os livros para tocar na igreja, lembro-me constantemente de ti.
Agarrado a essa mesma mão fui tantas vezes à feira na vila quando ela ainda se fazia por outros locais bem diferentes dos de hoje. As calças eram o produto mais requisitado mas ficam na memória aquelas chuteiras da marca “Rei” para usar no recém-criado torneio de futebol do parque. A cada dia 5 e 20, quando chego à vila para trabalhar na Academia e levo mais tempo a estacionar porque há feira, nesses segundos enquanto procuro estacionamento, lembro-me constantemente de ti. Sempre.
Agarrado a essa mesma mão que tantos mimos me dispensou, fui, pela primeira vez, a um ensaio de teatro. Os papéis eram passados por ti, lembras-te? Tudo à mão e com caneta azul e vermelha. Tenho todos organizados numa gaveta como quem guarda o melhor de nós mesmos. E a cada ensaio, a cada nova peça, lembro-me constantemente de ti. Se ainda conseguisses discernir as coisas com naturalidade estou certo que ficarias feliz de saber que atualmente sou o presidente do GCRR.
Essa tua mão levou-me ainda vezes sem conta nas visitas que fazias às tuas irmãs a Sinja e à Lomba onde consigo ainda ver-te com um xaile bege que usavas com frequência. Numa altura em que os marcos dos hectómetros ainda estavam todos intactos, por vezes largavas-me a mão e eu corria até ao próximo marco para me sentar nele à tua espera enquanto vinhas ao meu encontro a sorrir. Sabes, de cada vez que ligo o pisca do carro para regressar a casa, lembro constantemente essas pequenas corridas de 100 metros.
Foi ainda essa tua mão que me salvou a vida naquele dia 17 de julho de 1991 quando pensava que cada respiração iria ser a última. E tu deste-me de novo à luz nesse novo parto que moldaria a minha vida para sempre.
Gostava de conseguir recordar contigo todas estas memórias e tantas outras que trago comigo. Bem sei que já não te recordas quem sou nem sequer do meu nome. Mesmo assim, há dias em que venho para casa com um sorriso maior, como aquele em que chamaste pela Isabelita. Gostamos muito de te ter connosco.
Neste dia tão especial trago-te um texto do antigo livro de leitura da escola primária, lembras-te?

Filho és, pai serás

Há muito tempo, num país distante, um homem, vendo que o seu pai já era velho e não podia trabalhar, resolveu livrar-se dele.
Assim, num certo dia de Inverno, pegou numa manta e numa broa e convidou o pai a acompanhá-lo até ao cimo de um monte.
Chegado lá, o filho disse ao pai que não o podia alimentar e que, por isso, ali o deixava.
O pai, de lágrimas nos olhos pela tristeza de se ver assim tratado pelo filho, ainda teve forças para lhe perguntar:
- Filho, não trazes, por acaso, uma faca?
- Para que a quer, meu pai?
- Olha, filho, lembrei-me de cortar esta manta e esta broa ao meio para que leves uma parte para casa.
- Para quê, pai? – perguntou o filho, intrigado com a atitude do velho.
- É para o teu filho te dar quando fores velho como eu e já não puderes trabalhar...
O filho olhou o pai e, compreendendo a lição que este lhe dera, chorou de arrependimento e trouxe-o de novo para casa onde o tratou com carinho até à hora da sua morte.

Cá em casa não são precisas facas, mãe. Todos os dias te colocamos uma mantinha sobre o corpo para que passes o dia mais quentinha e confortável.
Em tempos, na minha meninice, costumava perguntar-te:
- E se eu não fosse desta casa?
Respondias-me que eu era teu filho e que, por isso, tinha de ser desta casa. Eu insistia com frequência e tu acrescentavas que se eu não fosse desta casa me ias buscar onde eu estivesse. Como eu não era fácil de convencer lembro-me de perguntar:
- E se tu não soubesses o caminho?
Dizias-me que sabias os caminhos todos e que me ias buscar onde eu estivesse porque eu era desta casa.
Hoje passas os teus dias sentada num cadeirão e sou eu que quero dizer-te que se tu não fosses desta casa era eu que te ia buscar onde quer que tu estivesses.
Gosto muito de ti e quero passar todos os dias contigo a encher o saco velho da memória. Porque há-de chegar o dia em que terei de o abrir e será muito melhor encontrá-lo bem cheio.
Obrigado por me teres levado sempre pela mão.
Um dia hei-de voltar a deixar-me ir por onde me levares. Hoje pode muito bem ser esse dia.
Gosto muito de ti. Gostamos. Mesmo que já não saibas quem nós somos. Mas nós sabemos bem quem tu és. E isso faz toda a diferença.
Tenho muitas saudades do teu colo.
Parabéns.

Do teu filho mais novo,
Miguel

A terra dos sonhos

Diz o Jorge Palma que “na terra dos sonhos podes ser quem tu és”.
Confesso que nem nos melhores sonhos imaginava algo assim. É por isso que digo constantemente que ainda bem que há gente que é muito melhor do que nós. 
Em Rossas, ali bem junto à escola primária, num tempo em que as portas das casas ficavam abertas durante o dia, havia uma casa pequenina. A entrada era feita pela parte de trás, onde umas escadas rosadas davam acesso a uma cozinha. Ao fundo dessas escadas foram muitas as vezes que ergui a canastra à tua avó depois de ela trazer sardinha da boa.
Ontem, enquanto fazias a tua atuação de consagração, com o troféu nas mãos, lembrei-me disso e de um dia em particular quando era aluno do ciclo preparatório. O teu pai precisava de sair do ciclo para resolver algo no centro da vila (com o conhecimento da tua avó), mas não tinha a respetiva autorização para sair do recinto da escola. O plano haveria de sair da minha cabeça. Tirei o meu cartão da carteira e copiei exatamente o que lá estava escrito trocando, obviamente, os nomes: “Autorizo que o meu educando...”, etc, etc... Não sei se o teu pai ainda guarda esse cartão mas, embora com o nome da tua avó, são a minha letra e a minha assinatura que estão lá. E foi assim que o plano teve sucesso e o teu pai foi, nesse dia, em plena tarde, ao centro da vila.
Há quem diga que “o Homem nunca é tão grande como quando está de joelhos” e essa foi a imagem mais marcante da noite: ver o teu pai de joelhos. Emociona, muito além da forma como cantaste. Sabes que na minha meninice, a maior parte de nós tinha por Arouca o mundo inteiro. Passados tantos anos o teu pai (e a tua mãe, restante família e amigos, certamente) escancarou-te as portas do mundo. O mais que um pai pode desejar para os seus filhos é que estes sejam muito melhores do que eles foram.
Tu és grande, Simão. Obrigado por me teres emocionado na noite de ontem. Se continuares assim, embora não seja nada fácil, vais ser ainda maior que o teu pai.
Um abraço.

Miguel

O Chalana e o Simão

 

Olá Simão.
Imagina um tempo em que eu era mais pequenino. Ainda mais novo do que tu.
Em Rossas, o edifício da escola primária estava diferente do que vemos hoje. No recinto do recreio, os postes das balizas eram pedras colocadas no chão e a bola (quando existia) era quase sempre de borracha. As equipas eram feitas depois de um par ou ímpar entre dois colegas. Podes não acreditar mas, nesse campo, joguei vezes sem conta com o Chalana, não sei se já ouviste falar... Claro que não era mesmo o meu grande ídolo de infância, aquele que aos domingos à tarde o Ribeiro Cristóvão relatava na Rádio Renascença e que fazia as delícias dos adeptos do Benfica. Era o outro, o meu colega de escola primária e que viria ainda a ser da minha turma também no primeiro ano do ciclo preparatório. Era assim que chamávamos ao teu pai nessa altura. Porque embora pequeninos, queríamos ser grandes. E a sê-lo, escolhíamos os melhores. Por isso nos intervalos corríamos e brincávamos como se o Benfica (ou o Porto e o Sporting, conforme as preferências de cada um) estivesse todo nos nossos pés. O Ribeiro Cristóvão nunca esteve em Rossas mas poderia ter feito relatos de autênticas finais se tivesse visto o Quiquinho, o Pedro do Neca e o do Selmo, o Eduardinho ou eu e o teu pai. Havia habilidades para todos os gostos.
O tempo passa por nós num piscar de olhos. Hoje trabalho na Academia de Música e o teu pai já foi até Presidente da Junta de Freguesia. Vamo-nos encontrando aqui e ali, trocamos dois dedos de conversa, umas risadas e voltamos ao nosso dia-a-dia e às nossas obrigações.
Gostei de ver o teu pai na televisão. E enquanto cantavas eu ia lembrando todas as pequenas histórias da minha meninice em que o teu pai também era protagonista.
Tens o talento natural para estar num palco. Não só no fado mas também na representação. A tua performance e a tua postura só pode encher os arouquenses de orgulho. Claro que os concursos são o que são... Só um levará o prémio embora eu tenha visto e ouvido lá vários vencedores. Naquele palco passaram muitos meninos e meninas com talento bem acima da média. Mas nós gostamos dos que são nossos. E tu, agora és nosso. É por isso que embora não considere que sejas o candidato mais forte gostava muito que ganhasses. Por tudo o que escrevi acima.
Se num jogo de futebol tivesse de escolher entre o teu pai e o verdadeiro Chalana para jogar pela minha equipa a escolha era óbvia: seria o teu pai. Porque é isso que fazemos com os amigos, com aqueles a quem queremos bem. Porque no fim do jogo o Chalana continuaria a ser o Chalana, mas o teu pai continuaria a ser meu amigo.
Para mim, hoje, diria que és o Carlos do Carmo assim mais ou menos como o teu pai é o Chalana.
E embora isso seja o menos importante, gostava muito que ganhasses. Quanto mais não fosse, para ver o teu pai a sorrir na televisão e poder lembrar os meus filhos que tive o prazer de ser seu amigo no longínquo tempo da minha escola primária.
Um abraço.

Miguel

Evocando a Palmirinha da Póvoa

Hoje o telefone tocou. Por coincidência, ao mesmo tempo que o som do sino da igreja entrava pela casa dentro. Do outro lado estava uma voz amiga a cumprir o triste dever de me informar da partida da "Palmirinha da Póvoa".
Era ainda uma criança quando conheci a Palmirinha. Foi pela mão da minha mãe (literalmente) que cheguei ao meu primeiro ensaio de teatro. A peça, da qual já não recordo o nome e que seria protagonizada apenas por crianças, nunca viria a chegar a cena. Mas a Palmirinha, felizmente, não deixaria de continuar a tentar. A acreditar. Por várias vezes a receita repetia-se. Lançava-se as sementes à terra. Uma nova peça ficava na calha. Até que chegou uma altura em que as sementes começaram a dar fruto.
Sob a orientação da Palmirinha entrei em vários espetáculos de teatro. Primeiro em participações em pequenos números, entreatos ou cançonetas e, um pouco mais tarde, em pequenos papéis nas peças de teatro protagonizadas pelos atores mais talentosos que Rossas tinha na altura. Foi assim que comecei, "amparado" pelo Fernando Antunes, pelo Fernando do Souto, pelo Fernando Pinho, pelo Zé Mário, pelo Arménio, pela Isabelita, pelo Alexandre, pelo Zé António, pelo Mário, pela Carmo ou pela Vira. Tudo isto ao lado dos amigos da minha idade como o Tono, o Pedro, o Rui, o Sérgio ou a Belinha. A minha mãe fazia o ponto e a Palmirinha era a encenadora. Parecia ter sempre a resposta certa para todas as dúvidas de "representação". É um talento com que se nasce e a Palmirinha trazia-o com ela como quem leva uma criança pelo colo.
Era ainda muito novo para perceber os sacrifícios que a vida nos obriga a fazer. Com os pais doentes e uma vida de trabalho, a Palmirinha era quase sempre a última a chegar aos ensaios. Era já com os atores a contracenarem que entrava pela porta, apressada, tirando os livrinhos de uma pequena saquita que sempre a acompanhava. Os dedos das mãos mostravam bem as marcas duras de uma vida de trabalho. Na década de 90 desentendemo-nos. Tivemos visões diferentes daquilo que poderia ser o futuro do Grupo Cultural e Recreativo de Rossas, associação da qual sou o atual presidente e de que a Palmirinha, sócia n.º 4, para além de primeira encenadora, foi fundadora. Uma das principais, acrescente-se.
Carreguei comigo durante bastante tempo o fardo de ver a Palmirinha afastada do mundo do teatro. Embora sempre para o mesmo lado e mais ou menos à mesma velocidade, o mundo dá muitas voltas. Foi assim que ainda no tempo em que o Mário Soares presidia ao GCRR se falava em homenagear a Palmirinha. Um responsabilidade que herdei aquando da minha primeira eleição a 22 de outubro de 2017. Nessa altura, Palmirinha, voltámos até a ensaiar um orfeão. Criámos a revista "APARTE" que fiz com que os exemplares lhe chegassem às mãos. Recordo, agora com saudade, a noite em que me telefonou a agradecer o gesto e se teria de pagar alguma assinatura. O que eu me ri com isso, Palmirinha. Tentei explicar-lhe que a honra estava do nosso lado ao poder oferecer-lhe algumas memórias escritas em papel. Creio que foi a primeira vez que falei consigo a dar-lhe conta da intenção de lhe fazermos uma homenagem. Chegámos a ter encontro marcado em sua casa para eu lhe explicar o que estaríamos a pensar fazer. Levaria a Vira comigo para falarmos mais à vontade. Infelizmente, a Palmirinha haveria de ter o AVC no decorrer dessa semana e as coisas esmoreceram. Lembro-me que nesse telefonema, antes de desligar, me recomendou: "nunca deixes o grupo desviar-se daquilo para o qual foi criado: cultura e recreio". Eu sorri e respondi: "fique descansada. Não esqueço".
Honra me seja feita, se há algo que repito constantemente nos nossos espetáculos e nos nossos ensaios é que devemos honrar os que nos precederam. Os que sonharam antes de nós.
Quem ajuda a fundar uma associação e dá movimento ao teatro, à cultura e ao recreio durante tantos anos, com tanta dedicação e envolvendo tanta gente, não deveria partir assim, de forma apagada e quase solitária.
Hoje o sino tocou.
Por esta altura a Palmirinha estará já em cena, num outro sítio, a preparar um novo espetáculo juntamente com o Sr. Brandão da Seca, a Celestinha da Portela ou o Sr. Silva dos Carreiros.
Por momentos, lembro as palavras de um texto escrito na extinta Defesa de Arouca que evocava o saudoso leiloeiro "Galo". Dizia esse texto que quem vive assim não deveria partir desta forma. Deveria, isso sim, morrer no fim de um verso ou no refrão de uma canção. Acrescento eu: "e com uma ovação de pé".

Miguel Brandão
Sócio n.º 9 e atual Presidente do Grupo Cultural e Recreativo de Rossas