A minha professora de piano

Foto tirada no final de uma Audição, no início dos anos 90.

Há muito que queria escrever-te.
Há tantas coisas que te queria ter dito e outras tantas que tenho agora para te dizer.
Sinto falta da minha confidente. E temos de ser honestos; poucas há como a nossa professora de piano, não é?
Em primeiro lugar queria dizer-te que a minha memória continua de boa saúde. Talvez seja por saber filtrar de forma paciente aquilo que realmente é bom de guardar. É por isso que a minha gratidão será para sempre. Lembro-me de tantos pequenos pormenores que é como se voltasse a estar lá o tempo todo. E, acredita, a expressão mais feliz é mesmo “voltar a estar lá”.
Ainda a semana passada voltei a fazer o mesmo percurso. Voltei a tirar fotos à tua casa. Desculpa. Bem sei que já as tenho aqui em número mais do que suficiente, mas não consigo resistir. O silêncio que sai de lá, a princípio parece assustar, mas depois acaba sempre por me tranquilizar. Parado, em frente ao portão, respiro fundo. Procuro sempre um odor que tenha permanecido e que me faça reviver tudo ainda mais do lado de dentro das memórias. Dizem que é esse também o lado de dentro da vida.
Sentei-me um bocadinho no passeio, sabias? Tentei abstrair-me da casa ao lado em “ruínas” que, obviamente, tinha um letreiro com publicidade à empresa do Miguel. Aquele que tem a felicidade de ser teu neto e que por algumas vezes me virou as páginas nas nossas audições de piano.
Sentei-me, já te disse? Gosto de te visitar com calma. Sem pressas. Para te contar todas as novidades e, claro, trazer também sempre algo novo para casa.
De repente, na minha cabeça, tudo volta a ganhar vida. O portão abre e procuro a porta de entrada que fica do lado de lá. Abro a porta e entro, percorrendo todo o corredor até à sala onde terei aula daqui a pouco. E faço-o, como se a casa fosse minha. Sentado, passando os olhos uma última vez pelo Fontaine ou pelo Hindemith, sou surpreendido pela tua voz já um bocadinho rouca que me cumprimenta com um sorriso enquanto solta um “Adeus Rui”! Essa tua forma de dizer olá ficou-me gravada para sempre.
A princípio eu levava os meus livros num saco de plástico, lembras-te? Só depois comecei a usar uma mochila. Tenho andado a ouvir o disco que me vendeste na altura com algumas sonatas interpretadas pela tua filha Isabel. Uma delícia. Na verdade, não foi a única coisa que me vendeste. Costumavas ter também umas agendas pequeninas que eu muito gostava e que te comprava todos os anos. E lembro-me que houve também uns livros que comprei para oferecer ao pai e à mãe nos seus dias respetivos.
Sabes, estar aqui sentado no passeio é ótimo. As memórias fluem de uma forma mais escorreita. Olho o fundo da rua e volto a ver-me com a Sílvia a aproximarmo-nos à mesma velocidade que o nervoso miudinho começava a tomar conta de nós. Na altura, nunca pensei que iria sentir falta disso. Mas sinto, e muito.
Aqui sentado é mais fácil lembrar o Miguel, a Joana, a Sandra, a Gracinha, a Diana, a Sílvia ou a Carla. Ou a Nelinha e o Paulo. Ai o Paulo... Era, de longe, o melhor entre os melhores. Era um privilégio assistir às suas aulas de piano. Aquele prelúdio em dó#m de Rachmaninoff não me sai da cabeça.
Há aulas que ficaram e ficarão para sempre. Como aquela em que me fizeste chorar por causa da minha sonata de Mozart. Valeu a pena. E aquela em que cheguei para ter aulas e o piano estava sem teclas. Na altura fiquei todo contente pois aproveitei o tempo livre para comprar alguns jogos para o meu Commodore Amiga.
Sabes, continuo aqui sentado, mas daqui a pouco volto a outros sítios que fizeram esses dias deliciosos. Vou voltar a olhar a vitrine do lugar onde antes comprava a Gazeta dos Desportos, o sítio onde antes tinha um banco comprido onde me sentava a fazer tempo até que chegasse a hora da aula. E vou voltar a ficar um bocadinho no centro de transportes a lembrar a música ambiente que passava nesses sábados. Talvez não saibas, mas era sempre a mesma.
Foi aqui, bem juntinho onde agora estou sentado, que o meu cunhado me veio buscar no dia em que saí da tua aula em Junho de 1993 para ver o meu primeiro sobrinho e afilhado que tinha acabado de nascer.
Se calhar o melhor é mesmo levantar-me que as memórias não acabarão tão cedo. Vou aproveitar para te ver já ali à frente, do outro lado da igreja, onde agora repousas de forma serena e tranquila. Assim poderei lembrar contigo, frente a frente, as nossas audições. Primeiro foram na Biblioteca e depois no Auditório da Academia de Música. Sabias que ainda guardo todos os programas e o bloco de apontamentos onde escrevias todas as preciosas indicações para que eu melhorasse o meu estudo? Guardo também aqueles cartõezinhos verdes onde apontavas as nossas mensalidades acompanhadas da data de pagamento.
Uma das coisas que mais te devo é o fato de me teres aconselhado a comprar uma quantidade enorme de livros. Gostava de ainda ter dedos para o Bach, o Cramer ou o Moscheles. Cheguei até a comprar, a certa altura, alguns cds para ouvir todas as peças e estudos que tinha outrora tocado. Apenas pelo prazer de voltar a praticar.
Finalmente olho-te “nos olhos”. Que posso mais dizer-te que não seja um eterno e profundo obrigado?
Estou a acabar a licenciatura em Composição, sabias? E com algumas notas que te encheriam de orgulho. Afinal, sempre tiveste razão. Sempre. Havia música na minha vida bem para além da matemática. Numa dessas disciplinas na Universidade de Aveiro, o professor quis saber dos alunos, um por um, o seu percurso musical. Foi uma honra, para mim, dizer que tinha sido teu aluno de piano. De tal forma me deixa orgulhoso que até o professor duvidou. Parece que ainda consigo ouvi-lo: “Mas o senhor não pode ter sido aluno da Professora Marília Rocha. Isso teria sido há muito tempo”. Soltei um sorriso. “E foi”, retorqui. “De 1989 a 1994”.
Aqui, em frente a ti, volto a lembrar aquele dia 23 de dezembro em que a Sílvia me surpreendeu ao telefone dando conta que tinhas partido. Agarrei-me ao livro das sonatas de Carlos Seixas a chorar de forma descontrolada sob o olhar compreensivo dos meus pais. Nesse dia agradeci-lhes com aqueles abraços especiais que guardamos cá dentro.
Tens uma idade bonita, sabias? 100 anos não é para qualquer um.
E agora desculpa, mas tenho de ir.
Deixo para o fim uma última memória marcante. Tenho ainda cá em casa o Dodecálogo de Busoni que me ofereceste. Todos os dias me martela aquela frase: “Não passes um dia sem estudar”. Tenho 41 anos e ainda estou a estudar música. Devo estar de consciência tranquila, certo?
Obrigado por tudo. Do fundo.

Miguel (ou Rui, como sempre me chamaste)

2 comentários:

Paulo Pinho disse...

Muito bonito Miguel.
Um abraço para ti e muitas felicidades na composição!

Miguel Brandão disse...

Muito obrigado Paulo.
Que agradável surpresa.
Há quanto tempo não te vejo.
Espero que esteja tudo bem contigo e com a tua família.
Tenho muitas saudades do nosso tempo de escola primária onde, juntamente com o Eduardo, eras o meu melhor amigo.
O tempo voa.
Um grande abraço.

Miguel