Eu e a Carla

A minha vida e a da Carla cruzaram-se, corria o ano letivo de 1993/94. 
Estávamos na mesma turma pelo que iríamos partilhar a mesma sala de aula durante todo esse período. 
Conhecia a Carla apenas de vista, dos corredores do liceu. Digamos que não era uma tarefa muito difícil dado que ela tinha um certo grau de popularidade. A minha tarefa ficava assim mais facilitada. No sentido inverso seria, certamente, muito mais difícil. 
Embora estivéssemos os dois na área das ciências, eu andava pela turma B e ela pela turma A. Só no nosso 12.º ano nos encontramos finalmente. 
Uma das coisas boas que esse ano me trouxe foi a sala 7 do antigo pavilhão 1. Do lado da janela, na última carteira, ficava eu com o amigo Nepinhas. Na fila do meio, também na última carteira, ficava a Carla com a amiga Susana. Não foram precisos muitos dias para que se começassem a trocar bilhetes, conversas e risadas em plena sala de aula. Tenho muitas saudades das míticas aulas da professora Angelina Martins que era uma jóia de pessoa e uma brilhante professora. Tenho saudades, também pelos ensinamentos que me deu, mas sobretudo das anedotas que acompanhavam os apontamentos que fornecia, das cómicas respostas que dava quando alguém ingenuamente perguntava “posso entrar?”, tenho até imensas saudades das piadas do Jonas. Mas o que me faz viajar mais no tempo para chegar a essa sala 7, são mesmo as memórias dos inúmeros episódios passados com o Nepinhas, a Susana e a Carla. É difícil enumerar tamanhas memórias. O receio de as estragar obriga a atenção e cuidado redobrados. 
Em casa, dentro de uma pequena caixa, guardo ainda essas cartas e bilhetes trocados, com a ternura de quem leva um filho pelo braço. 
Aos poucos, mas fazendo muito, a Carla foi-se tornando a minha melhor amiga. 
Sabes... 
Sinto falta daquele festival vicarial em que partilhámos o palco, primeiro com a canção da Escola Secundária que creio que se chamava “A família está doente”. Houve um dia em que fomos todos para tua casa e passámos a tarde a ouvir boa música. Talvez por isso ainda hoje tenha um carinho especial pelo álbum “Get a Grip” dos Aerosmith. 
Como Rossas ganhou esse festival, tive a felicidade de pisar o palco no Pavilhão Rosa Mota onde nos acompanhaste desde a primeira hora contribuindo até com as camisas que os elementos do coro usaram nesse dia. Tudo o que a palavra “Ressurreição” possa englobar esteve lá nesses dias o que faz com que quando chegar a minha hora eu me possa sentir reconfortado. 
Lembro-me de te fazer algumas visitas no Pão-de-ló, entre as quais uma em que te levei alguns textos para te ajudar numa festa da catequese, creio eu. Lembro-me ainda de, numa dessas vezes, me mostrares várias fotos daquele festival no Palácio de Cristal, fotos essas que podes começar a procurar pois não tenho nenhum exemplar e vou-te chatear um dia destes. Disso não tenhas dúvidas. Lembro uma foto em particular que mostra a minha ansiedade momentos antes de subir ao palco e que te fazia sorrir de forma quase descontrolada enquanto me mostravas. 
Há ainda aquele passeio de Religião e Moral de tão boa memória e que a foto acima tão bem documenta. 
Fomo-nos afeiçoando e, aos poucos, quando dei por mim, estava a querer saber coisas de ti e tu a querer saber coisas de mim. 
Ias perguntando das minhas atuações de teatro (aí eu ainda estava a dar os primeiros passos) ou pelas minhas aulas de piano. Nenhum outro colega ou amigo me fazia isso nessa altura. 
Ficaste amiga dos meus amigos o que, deves reconhecer, era uma tarefa relativamente fácil, dada a elevada qualidade das pessoas que me rodeavam na altura. 
Até que o ano letivo acabou. Íamos entrar para a universidade. Sem internet, facebook ou telemóveis. Perdemo-nos. 
E, acredita, nisso de perder, eu sou um ás. A vida ensinou-me que o “não sair à noite” tem as duas faces da mesma moeda. Tornou a minha vida extremamente preenchida de pessoas boas, atividades e feitos de que muito me orgulho. Mas, e há sempre um mas... Também fez com que perdesse alguns dos meus bons amigos que, entretanto, encontraram outros bons amigos. De vez em quando voltamos a encontrar-nos, falamos um bocadinho, mas lá volta cada um para o seu lufa-lufa e a vida continua em caminhos estranhamente opostos. E isso, às vezes, rasga bem fundo cá por dentro. 
No nosso caso foi bastante diferente. Estivemos cerca de 17 anos sem nos vermos ou falarmos (salvo algumas felizes exceções). Como aquela, em 1997, que me fez caminhar no autocarro do Calçada várias vezes até ao Porto para depois poder tocar, em pleno órgão da Sé do Porto, a tua missa de finalistas. 
Mas voltando ao reencontro... Passados todos esses anos, em plena praça no centro da vila, voltamos a falar como se a nossa última aula de matemática na sala 7 tivesse sido no dia anterior. Como se no dia seguinte fossemos trocar mais algum bilhete. 
Acabámos por marcar um jantar e, ainda que com alguma dificuldade de agenda, conseguimos cumprir. E eu não me esqueço que estiveste lá no meu último concerto pela Banda Musical de Arouca, um dia muito importante para mim.
É certo que, desde aí, tem sido difícil encontrar uma nova data para novo encontro. Mas acredito que o lanche que está prometido em minha casa aconteça um dia destes. E sabes o que é mesmo fixe? É que podes voltar a perguntar-me pelo piano, pelos festivais ou pelo teatro. Apenas acrescentei qualidade ao que fui fazendo, mas continuei a andar por esses caminhos. Sei muito bem que pelo menos metade da vida já passou, mas ainda acredito que são esses mesmos caminhos que me levarão ao sítio certo. 
Tenho saudades tuas. Vê lá se arranjas tempo para um lanche em minha casa que eu vou ver se faço o mesmo. É uma das minhas resoluções de ano novo. 
Beijinho e bom ano.

Miguel

1 comentários:

Anónimo disse...

Caro Miguel.

É sempre um prazer ler estes textos... faz-me lembrar, e bem, a minha juventude.

... de Guimarães.