Hoje era dia

Hoje era dia de levantar cedo.
Entre as 9h e as 10h da manhã já estaria por certo a carregar tralhas para a carrinha do amigo “Repolho”. Já tínhamos trocado cumprimentos e meia dúzia de graçolas com algumas asneiras à mistura. Acredito que faz parte da famosa “mística”. Com o corpo cansado mas de alma cheia estaria a trocar sorrisos com o Pepé escondido na parte da trás da carrinha enquanto os meus colegas tentavam obter o “livre trânsito” para aceder ao centro da vila para efetuar a respetiva descarga de material. Porque hoje era dia de preparar tudo com o maior zelo possível.
Hoje era dia de olhar o sol de forma diferente. Porque ia ser a minha maior companhia durante toda a tarde.
Hoje era dia do “amor à farda” e das “borboletas”.
Hoje era dia de lembrar os que já não estão. Quem o irá agora fazer?
Hoje era dia de estar sozinho no meio de uma multidão. De ficar sentadinho no meu canto a pensar em coisas que passavam despercebidas a todos os outros.
Hoje era dia de ouvir o Sr. Garrido a falar com alguém e perceber a cada instante o que é o amor à Banda Musical de Arouca.
Hoje era dia de ouvir as histórias do padrinho e de rir com as suas brincadeiras com os mais novos ou com as meninas.
Hoje era dia de suar e suportar o calor indo buscar forças onde nem sequer sabemos que existem porque o ar se torna mais “rarefeito” depois de duas ou três minis.
Hoje era dia de lembrar os Bailados Egípcios, as “Reflexões” ou a Pop Show n.º3.
Hoje era dia de ficar a olhar o Valdemar e deixar a admiração crescer naturalmente. Com pessoas assim a humanidade parece fazer mais sentido.
Hoje era dia de rir para o Cajarana que traria certamente os últimos óculos da moda para manter aquele seu charme “moderadamente espetacular”.
Hoje era dia de festa sem procissão.
Hoje era dia de viajar interiormente e fazer o balanço de mais um ano.
Hoje era dia de passar pelos carrosséis com o Pepé para mais um jogo naquele divertimento que nós sabemos.
Hoje era dia de ser noite. De tocar a Tannhauser com a destreza de um Usain Bolt, com a delicadeza de quem trabalha filigrana e com a simplicidade de quem toca um vira.
Hoje era dia de dar boleia ao Nando que, no final da festa, estaria já junto ao palco para fazer comigo o regresso a casa.
Hoje era dia de arrumar as tralhas enquanto a maior parte dos sobreviventes estava já instalado nas tasquinhas.
Hoje era dia de dizer “para o ano há mais”.
A verdade é que hoje foi igualmente dia de levantar cedo. Ainda mais cedo. Mas para trabalhar. A vida muda bastante num simples par de anos. Em frente ao computador lembro aquela nossa conversa rápida em que por entre todas as palavras que sempre me dispensas com muito carinho retive aquelas que disseram: “no último ano notava-se que tu já não era tu. Já não eras o Cebolinha. Sempre ali sozinho, no palco”... Deu-me que pensar.
Engraçado que neste tempo todo desde que os dias deixaram de ser dias, o mais próximo que estive de falar com alguém sobre este amor que nos une pela Banda Musical de Arouca foi na festa deste ano em Tropêço quando uma querida amiga de longa data a quem quero muito, reparou na minha atenção de ouvinte especial e se abeirou dizendo: “Então? Como é estar deste lado?”. Foram os dez minutos que mais falei sobre o assunto. Queria que tivessem sido duzentos. Porque falar da Banda Musical de Arouca, quer seja do lado de dentro, quer seja do lado de fora, é sempre motivo de orgulho e prazer. Faz bem à alma. De fora, há ângulos novos que se notam de forma mais nítida (“como a nossa casa só existe quando estamos fora dela, ou qualquer coisa assim”).
Hoje, nem sequer poderei assistir à entrada. Espero ter algum tempo para ir ouvir um bocadinho e “matar o vício”.
Hoje era dia de vestir a farda. 
Hoje era dia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não tenho tido muito tempo para andar pela net, mas quando tenho oportunidade, gosto sempre de passar por este avião de papel... mais um texto cheio de sentimentos que soube bem ler... e soube ainda melhor ouvir-te falar sobre o teu amor pela banda naqueles 10 minutinhos em Tropêço... Não está fácil mas, de certeza que consigo arranjar mais uns 190 minutos para acabarmos a conversa... Não perco a esperança de te ver novamente na Banda, a tocar clarinete, outro instrumento ou até quem sabe de batuta na mão... Tanto faz, de certeza que o que fizeres será bem feito e com paixão... Um grande abraço de quem também gosta muito de ti.

Miguel Brandão disse...

Obrigado pelas palavras.
Sei que não é fácil mas não precisam ser 190 minutos todos de enfiada... Podem ser repartidos em várias fatias de 10 minutos (faz as contas que eu a matemática sou um nabo). Assim os encontros são em maior número :)
Quanto à batuta, não me parece!
Quanto ao abraço, é retribuído com igual carinho!