Lembrando o mítico Sousa

Na foto: O Sr. Maurício Noites na flauta, eu na Requinta, o Sousa no Clarinete e o Valdemar também no clarinete.

A foto será algures de uma atuação da Banda Musical de Arouca em Santa Eulália, em finais dos anos 80 ou início dos anos 90.

Normalmente, quando escrevo um texto sobre alguma memória marcante ou sobre alguém que me é querido, as coisas costumam fluir de uma forma mais ou menos natural. Sempre com alguma emoção nas palavras a usar mas, de uma forma geral, costumo ficar satisfeito com as palavras que escrevo. Sobretudo porque me transportam para lá. Ainda que por breves (mas bastante saborosos) instantes, volto a sentir e a ser feliz da mesma forma.
Pois bem. Hoje não está a ser bem assim. Convenhamos que, pior do que isso: não está a ser mesmo nada assim. Em frente ao computador as memórias surgem igualmente a um ritmo ligeiro mas continuo estático sem escrever uma única palavra. Apenas me limito a olhar para o ecrã. Talvez hoje eu tenha resolvido ir um bocadinho mais fundo nesta viagem ao passado. Talvez não queira de lá sair. Não sei... Hoje parece-me estranha esta forma que encontrei para deslindar este novelo de recordações.
Há pessoas que a certa altura da nossa vida são muito importantes. Fazem parte do nosso dia-a-dia. Estão connosco quando estamos a fazer algo que gostamos. Aos poucos vamo-nos afeiçoando a elas. Até que nos damos conta que desapareceram. Num ápice, não as vemos há cerca de duas dezenas de anos.
Isso aconteceu-me, por exemplo, com o Sousa.
Não via o Sousa, creio eu, desde os saudosos anos 90. Talvez os anos de ouro da Banda Musical de Arouca.
O Sousa é um dos exemplos que me vem logo à memória quando me perguntam o que é, afinal, isso da mística da Banda Musical de Arouca. Porque essa mística é, também, uma maneira de ser. Como a do Sousa, acrescento eu. Confesso que a vida me tem concedido imensos privilégios. Tenho sido um abençoado em muito do que acontece na minha vida. Uma dessas bênçãos deu-ma a Banda Musical de Arouca quando me colocou, desde a primeira hora, a tocar ao lado do Sousa e do Valdemar. Que poderia eu pedir mais?
Guardo na memória montes de histórias que não consigo recordar de início ao fim sem antes me rir de forma descontrolada. Não há outra forma de lembrar o Sousa.
Nos anos 80 era frequente as bandas de música recorrerem a músicos profissionais para alicerçar a sua qualidade em bases sólidas. Muitos dos músicos da casa aprendiam apenas o básico, tinham logo direito a uma farda e eram “lançados às feras”. Uma realidade um pouco diferente daquela que encontramos nos dias de hoje. O Sousa era um desses casos. Fazia parte de uma trupe efetiva de músicos que vinham reforçar a já de si muito talentosa Banda Musical de Arouca. Era assim que tanto ele como o Pereira Luís, o Cravo, o Carlos Russo, o Raposo (e por vezes o Franklin ou o saudoso Mendes de Sousa) entre outros, faziam parte da família. Eram sempre eles que vinham e não outros. Era para mim um orgulho tocar com gente assim.
Numa altura em que quase todos os músicos fumavam, o Sousa não fugia à regra. Se bem que marcava a diferença: os outros andavam pelo Gigante e pelo Ventil mas o Sousa só fumava Ritz. Só quando o tabaco acabava e ele estava mesmo desesperado é que lá cravava um Ventil a algum dos meus colegas. A mim nunca me cravou pois, felizmente, nunca fumei.
Para além de excelente clarinetista, uma das principais características do Sousa era a quantidade de asneiras que empregava em cada frase que dizia. E isso encaixava na Banda como uma luva. Só quem por lá andava por essa altura compreenderá bem o que estou a dizer. As histórias que lhe saíam da boca eram de uma graça impressionante. Tinha diálogos com o Sr. Maurício completamente surreais que guardo comigo para a eternidade. Então aquela do congresso que se fez para saber qual a melhor coisa do mundo... Ainda hoje me rio com a do “pão-de-ló”!!!
Já aqui escrevi também sobre aquele dia em que borrou as calças ao fazer as necessidades pelo que à tarde apareceu com umas calças de ganga. O que ele se ria a contar... Naquele tempo os jogos do campeonato eram quase sempre ao domingo à tarde pelo que enquanto os jogos decorriam normalmente estávamos no coreto a tocar. O Sousa era o primeiro a “meter” veneno. Sempre que acabávamos de tocar uma peça começava logo a espalhar: “O Benfica já perde! O Sporting já ganha! O Porto ainda empata!” E tudo isto sem saber sequer os resultados. Era só para ver a malta em polvorosa! E depois ria-se! Muito!
Apesar de exímio executante, não gostava muito de fazer os solos empurrando quase sempre para o Valdemar e, mais tarde, também para o Jorge. Talvez por isso tenha ganho a fama de calaceiro o que, em rigor, era bem verdade.
Lembro-me de uma festa (creio que em Moldes) em que lhe cobriram o carro, um Rover Preto (acho eu, ajudem-me), cheio de flores. No fundo, era uma partida de reconhecimento pelo carinho que a maior parte da malta mais nova sentia por ele. O sentimento era recíproco. A tal ponto que numa dessas festas fora, aquando do regresso, nós, os mais novos, vínhamos a fazer o maior barulho possível. Era a chamada “borga” elevada ao máximo nível. A tal ponto que cada um tinha em seu poder partes de instrumentos da percussão para que o silêncio não ganhasse quando as vozes se cansassem. O Sousa, como outros, precisavam de descansar pois o dia seguinte era de trabalho. Pediu para que nos moderássemos embora sem sucesso. Aliás, a cada pedido feito o barulho aumentava ainda mais. Mas o Sousa é o Sousa. Levantou-se, e com aquele riso entre meia dúzia de asneiras, sentou-se junto a nós e começou também ele a cantar e a fazer barulho. Quem não estava pelos ajustes era o Carlos “Aguilhão” que ainda nos veio passar um sermão e tentou tirar algumas das nossas percussões. Ainda se virou para o Sousa mas ele, nessa hora, conseguiu colocar a cara mais séria que foi capaz e lá deixou escapar: “Eu?! Eu não vinha a fazer barulho nenhum! Eu até também queria dormir!”. Foi só o tempo do Carlos virar costas e gargalhada geral. Ainda o estou a ver a sair do autocarro do Calçada com um “Adeus malta”!
Lembro-me também das inúmeras vezes que jogou à bisca dos nove com o meu tio, o Sr. Soares. Lembro-me de uma em particular que teve o Pereira Luís como “adjunto” que se colocou estrategicamente por trás do meu tio para ir dizendo o respetivo jogo ao Sousa. Nem assim. Nunca o vi ganhar. O Sr. Soares limitava-se a dizer: “Ó Sr. Sousa, quando o senhor nasceu já eu era professor disto”! Ótimas memórias.
Mas do Sousa há duas memórias que guardo com especial carinho. A primeira diz respeito a uma festa em que na viagem de autocarro, como em tantas outras, fomos jogar uma suecada. O local escolhido era aquela salinha que tinha em baixo numa das camionetas do Calçada. O meu parceiro nesse dia foi o Movilar (talvez ele se lembre desta história) e os oponentes eram o Sousa e o outro não sei precisar mas acredito que fosse o Mauro. O combinado era pagar uma garrafa de vinho a quem chegasse primeiro às 10 vitórias. Sabem como é o Sousa, não sabem? O jogo esteve nos 9-9 e o Sousa fez milhentos “macetes”. Nós ganhávamos mas íamos a bater a última vaza e ele tinha já deitado uma carta ao chão para dizer que tinham sido mal dadas ou outra desculpa qualquer. Fez isto aí umas cinco ou seis vezes seguidas. Mas não adiantou. Porque os Deuses estiveram do nosso lado e ganhámos todas essas partidas. O que é certo é que lhe perdoamos a garrafita mas, para surpresa nossa, na hora do almoço lá chegou uma garrafita de verde banco à nossa mesa trazida por um empregado. Já vinha quase meia mas mereceu na mesma o nosso agradecimento. Ao fundo do restaurante, numa outra mesa, o Sousa sorria e acenava. Agradecemos da mesma forma.
Mas a melhor memória que tenho do Sousa foi numa festa em Silveiras. Como todos sabem, era natural ver o Sousa a olhar para as meninas e a trocar impressões sobre as que eram mais jeitosas e bonitas. Pois bem, nesse dia lá estava uma menina toda bonita a olhar a Banda em pleno coreto ao fim da manhã. Logo o Sousa alerta o Sr. Maurício e me aconselha: “Olha para aquilo! Eu não, mas tu que ainda és novo e tal...”. Vira-se para o Valdemar para continuar a ladainha e estava este a rir-se a olhar para mim! E retorquiu: “Ó Sousa, olha que essa é a namorada do Cebolinha”! Mas ele não se desmanchou. Virou-se para mim e atirou: “Ai sim?! Pois bem rapaz. Tens bom gosto!” E lá nos rimos os três.
Parece impossível estar quase 20 anos sem ver o Sousa. Acontece com algumas pessoas na nossa vida, não é verdade? Mas no fundo, acreditamos que elas estão bem e isso costuma bastar. No caso do Sousa isso durou apenas até há alguns dias atrás. Quando um amigo conterrâneo partilhou no facebook um vídeo da Banda em 1992 na festa em honra de Nossa Senhora do Campo. Lá estava eu ao lado do Sousa em plena procissão. Partilha leva a partilha até que alguém comenta: “Deus o tenha”. Foi assim que fiquei a saber que desde 2015 o mundo filarmónico anda mais triste porque já não tem as gargalhadas do Sousa.
Ficam as memórias. As boas, claro. O que já não é pouco.
Até sempre.

1 comentários:

4CP11 disse...

Bonito texto "Cebolinha". Eu ja sabia que o " nosso" Sousa se tinha ido embora...
Saudades...