O Último Concerto

Para uns é mais cedo, para outros é mais tarde. Para mim foi neste fim de semana: o “último” concerto. Se bem que dividido em 2 atos: Coimbra e Aveiro.
Coimbra tem um encanto que não se explica.
Chego cerca de uma hora antes do que estava previamente estabelecido. Isso dá-me tempo para saborear memórias recentes no recinto encostado à minha direita. Nestas últimas férias fui muito feliz no Portugal dos Pequenitos onde passei horas seguidas olhando de longe a felicidade da Rita e do Tiago. Nesse dia, os meus dois únicos filhos (agora já são três) mais não eram que a extensão da alma de criança que trago dentro do meu corpo. Lembro-me de seguir cada movimento com uma atenção tal que os sorrisos saíam-me de forma cada vez mais frequente enquanto me dava conta que ainda tenho muito que aprender para continuar a ser criança.
Sigo o meu caminho e demoro ainda um pouco até descobrir a entrada para o local onde será o concerto quando a noite resolver aparecer. Lá dentro, juntamente com os meus colegas, faço o reconhecimento das instalações e aproveito um sítio confortável para descansar o corpo. Enquanto isso, há tempo para cumprimentar uma amiga que durante a semana trato por professora. Falámos um pouco e voltando a ficar sozinho fico a sorrir com a curiosidade de estar prestes a fazer música com alguém a quem na semana seguinte estarei a chegar estantes ou a tirar fotocópias. A vida tem, de facto, os seus encantos. Entretanto chega a amiga de Arouca (há sempre alguém de Arouca em qualquer canto do mundo) e troco dois beijinhos como quem partilha toda a bondade e admiração que se consegue encontrar num corpo tão franzino como o meu.
Entretanto seguimos para o aquecimento. Enquanto me posiciono vou admirando o local. Olho em redor e reparo que “não estás cá”. Por esta altura terias já trocado umas palavras comigo e eu dir-te-ia que os meus pequenos estão bem mas que o tempo para ser “músico” é cada vez menor. Estou certo que me animarias de alguma forma e acabaríamos a conversa deixando na minha garganta o gosto amargo de não te encontrar nas aulas de composição.
O ensaio acaba e somos convidados a jantar. A esmagadora maioria segue nos autocarros. Eu sigo o caminho oposto e faço-o de forma mais solitária. Há momentos em que estando na periferia conseguimos uma realização mais plena do que estamos a viver. Sozinho é mais fácil reparar na beleza do Mondego a fazer lembrar as trovas ao Douro nos meus primeiros tempos de estudante.
O céu já veste de negro quando acabo por regressar ao local do concerto muito antes da maioria dos meus colegas. Faço uma ronda pelos camarins quando sou interrompido por uma voz doce que se recorda das minhas feições mas não do meu nome. “Não, também não fui jantar com eles” – respondo eu, sorrindo, enquanto volto ao meu lugar de descanso/concentração.
Entretanto vários colegas vão trocando algumas impressões, também comigo. Aproveito para parabenizar um amigo pela conquista de um prémio e sou surpreendido com a curiosidade sobre o meu rebento mais novo e sobre a estreia de teatro que vai acontecer no fim de semana seguinte e que “anda tudo a pensar no mesmo”. A internet, às vezes, tem o seu encanto...
A hora aproxima-se e vamos começando a subir empacotados em elevadores. À saída dos mesmos, por ironia do destino, espera-nos outra “sala de espera”. Mais uma vez deixo-me ficar um pouco à margem. É incrível o que se consegue assimilar desse lado da vida. Voltei a olhar em redor e voltaste a “não estar cá”. As meninas exibem roupas requintadas que lhes realça a beleza natural e parecem trazer no rosto a tal “face das pequenas” que o Paião eternizou no seu Pó de Arroz. E tudo salta à vista como se de um quadro de Rembrandt se tratasse.
Entretanto, vamos obedecendo a indicações preciosas que nos são dadas pelo que num ápice estamos perfilados em frente a uma porta à espera da aprovação de alguém. É chegado o momento de sermos melhores que nós mesmos.
O concerto corre bem, a música de Rossini aqui e ali vai-me preenchendo a alma e depois de atirar um até amanhã a alguns dos meus colegas é já a caminho do carro que sinto que tudo valeu a pena.
É com a banda sonora que os meus sapatos entoam no passeio que me dou conta que este é o “último” concerto. A minha boca, em surdina, ainda vai cantando o “Amen” da fuga final (aquela música entranha-se no cérebro) e é nesse cenário que me lembro dos Queen e daquela que foi a última canção do último álbum editado com o Freddie ainda vivo. E tudo parece fazer ainda mais sentido: “The Show Must Go On”. Abro a porta do carro e imagino o Freddie debilitado a fazer toda a canção de forma perfeita, num só take, como nos é contado pelo Brian. O fim não é necessariamente mau. Depende da forma como se acaba. E o Freddie acabou bem.
Entro e pouso o livro da partitura no banco do passageiro. Só aí reparo no nome Rossini escrito a letras garrafais na capa e lembro-me que é italiano. Deixo escapar um sorriso disfarçado: afinal “estavas cá”. Sigo o caminho para casa sabendo que no dia seguinte em Aveiro me espera outro “último” concerto. Que não será muito diferente deste. Ou de outro qualquer...

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