"Despertar" para o meu liceu...



Hoje vou contar-te uma história. De forma antecipada, peço já as minhas desculpas pois, como já deves saber, estou pouco à vontade com as palavras. Mas hoje, aqui e agora, a vontade de te contar uma história falou mais alto. Então, cá vai...

"Chamava-se Miguel.
Naquele dia, como em tantos outros, acordou às 7h da manhã. Quando descia para tomar o pequeno-almoço já a mãe tinha regressado da padaria que ficava ali por baixo da casa do Ferraz. Antes de sair para a escola gostava de olhar ao espelho para verificar se o penteado estava na configuração habitual. A roupa, essa, incluía sempre umas calças de ganga duma qualquer marca da moda, uma camisa sempre por fora das calças e uma par de botas texanas do mais pontiagudo que houvesse no mercado. Para o ritual ficar completo, o último retoque englobava a passagem de uma palmada de água pelo cabelo e um cheirinho do perfume do irmão mais velho para não fazer má figura junto das meninas. Só assim poderia deitar as mãos ao seu caderno diário (uma capa forrada com o póster do Freddie Mercury) e sair rumo a outro "dia mais feliz da sua vida".
A camioneta passava perto das 8h e era apanhada quase sempre "in extremis". Ao abrir a porta de casa, o Miguel encontrava quase sempre o Tono ou o Sérgio cujos dias lhe ensinaram que dificilmente apareceriam amigos de igual calibre pela vida fora. Sábios ensinamentos. E lá seguiam em passo apressado até à paragem da barroca, mesmo que por vezes tivessem que subir o combro junto à antiga serração pois os camiões estacionados e os trabalhadores a jogar à bola na estrada faziam com que não quiséssemos interromper.
A paragem, embora ainda esteja no mesmo sítio, era, na altura, bem diferente. Sobretudo porque ao virar a esquina da loja da Emilinha avistava-se logo uma imensidão de gente; pessoas a quem pertencíamos e que nos faziam querer ter um dia igual quando o amanhã chegasse.
Entrar na camioneta era um dos rituais mais aguardados. Nunca se conseguia lugar sentado mas para além do Tono e do Sérgio, abraçava-se o Pedro, falava-se de futebol com outro amigo qualquer, cumprimentava-se a Carminda ou procurava-se o sorriso da Patrícia. E isso não tem preço. Mesmo que estivéssemos em pé, apertados, pior do que sardinhas enlatadas. E depois começava a "Canção do Despertar" da Rádio Renascença com o António Sala e a Olga Cardoso. E todos cantavam entre encontrões e pisadelas. O Miguel chegava à escola de coração cheio.
Quando as aulas não começavam logo às 8h30 haviam os famosos jogos "turma contra turma" que fizeram o Miguel correr quilómetros durante os seis anos de liceu. Celebrar um golo com os amigos com quem se partilhava a sala de aulas é uma sensação que ainda hoje o Miguel gostava de ver repetida.
As salas 7, 11, 28 ou 41 foram, a seu tempo, míticas. Testemunhas de histórias que só o coração soube guardar até hoje. E o Miguel bem se lembra de partilhar a carteira com o Rui, o Bruno, a Helena, o Freitas ou o grande Nepinhas.
Há tantas coisas de que o Miguel tem saudades... As aulas de Educação Física, as conversas no balneário, as filas da cantina, a proximidade que se criava com os funcionários, os professores... A D. Emília do Bufete era uma santa mulher, o Sr. Antero das fotocópias um exemplo de vida e o tempo que se passava em amena cavaqueira com a mãe do Celso antes de tirar a senha para mais um pão com fiambre fica guardado para a eternidade.
O Miguel tem ainda saudades das conversas com os colegas da mesa ao lado ou da frente. Trocar bilhetes com a Dulce, a Fátima, a Carla, a Susana ou um riso com a Rosário faz parte do passado que deveria ser sempre presente.
A sala de convívio e os filmes que lá passavam em altura de eleições para a Associação de Estudantes também têm o cheiro de saudade. Isso e os filmes que passavam no casarão ou na sala de Moral. Foi lá que o Miguel viu o Batman, o Encontro de Irmãos, Em Busca da Esmeralda Perdida ou o Homem com os Dois Cérebros, por exemplo.
Depois havia ali o corredor mesmo em frente ao pavilhão 2 onde costumavam estar os mais populares. E era em muitos desses corredores que o Miguel sorria muitas vezes para a menina que amava em segredo.
À noite, enquanto se vinha esperar a camioneta à vila, havia sempre tempo para uma partida de bilhar no Cheiro Verde com o Pedro. Sim, esse mesmo: aquele que Deus fez e deitou fora a receita. De tal forma que se torna difícil encontrar igual. Talvez não haja.
O dia acabava já em casa com um beijo ao pai e à mãe que, diga-se em abono da verdade, davam sentido a tudo o resto.
Chamava-se Miguel."

Hoje o Miguel tem 40 anos e, não tendo nada disso, no fundo, até tem. Está tudo na distância que vai do coração até à ponta dos dedos ou, por vezes, até à "ponta" dos olhos. Hoje foi pelos dois lados. Quando é assim, costuma trazer um nó na garganta. Vou tentar não lhe dar muita confiança.
Engraçado como mesmo com esta idade, no caminho para o trabalho, ele continua a procurar o sorriso da Patrícia, o olhar da Carminda, o rosto do Pedro ou o abraço do Tono.
A vida é bonita, não é?
Um abraço e um beijinho a todos os meus colegas de liceu.
Vocês, não sei... Mas eu ainda vou cantar o "Despertar" antes de me deitar.
Boa noite.

Miguel

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