A Volta ao Mundo em 80 Anos

Olá pai.
Dizer que Jules Verne foi um génio é dizer muito pouco de quem gostaríamos de dizer muito. São tantas as suas obras de qualidade que pouco importa os adjetivos que usemos para o descrever. E hoje, pai... Hoje eu não queria falhar. Queria ter o talento sublime de Verne e conseguir contar os teus 80 anos com as mesmas palavras com que Verne descreveu 80 dias à volta do mundo. E eu queria conseguir descrevê-lo: o teu mundo. O nosso mundo. Os teus 80 anos. Os meus quase 40; todos contigo. Se eu tivesse hoje, pelo menos, uma ínfima parte desse génio na ponta do meu lápis...
Sabes pai, mesmo sem o talento de Verne, hoje apetece-me dizer-te que o chão da eira ainda está frio. É lá que me vou entretendo a brincar com as caricas, fazendo autênticas corridas de Fórmula 1 enquanto tu e o Padrinho do Paço vão tocando, no banjo e na viola, "A chinela encontrada..." ou o "Cartolinhas". É esta a tua memória mais antiga e mais querida que trago comigo. Como primeira recordação, o quadro não poderia ter-me trazido mais bela matiz.
Depois há ainda as memórias dos passeios até à ponte de Sinja onde me recordo perfeitamente de me pousares uma joaninha na mão; ou os sapatitos do menino e a mão escondida atrás da porta; ou o teu riso quando me vias a dar aquelas "perigosas" curvas tombadas; ou a quantidade interminável de vezes que jogaste comigo o "Jogo do Assalto"; ou quando me deixaste comprar um baralho de cartas por 80$00 e jogavas comigo à bisca dos nove; ou quando te ficava a ver consertar a bicicleta; ou aquelas aulas de piano que, estou certo, ainda não foram inventadas as palavras certas para eu te poder agradecer; ou quando me levavas aos ensaios da Banda às 18h juntamente com o Pedro, o Tono e o Sérgio; ou, etc, etc, etc...
Eu bem sei que não posso ter sempre 6,7, 8, ou 12 anos. Da mesma forma também não estacionaste nos 40. Mas continuas a trazer-me tudo isso até mim sempre que escreves um poema novo ou transcreves uma qualquer música que eu te pedi.
Sabes pai... Gostava de ser como tu. Gostava que a Rita, o Tiago e o André, um dia, olhassem para mim e vissem um "retrato" parecido com o teu ou com o do Padrinho do Paço.
Acho que já sei por onde começar... As férias e o bom tempo já chegaram. A eira já não existe mas um chão frio e caricas são o que não falta por aí. Se não te importares um dia destes apareço no Paço com a minha viola para me acompanhares com o bandolim. Podemos até começar pelo "Cartolinhas" e "A chinela encontrada..." enquanto a Rita e o Tiago vão brincando um com o outro como eu fiz tantas vezes à porta de tua casa. Porque acredito que eles vão gostar muito do pai. Mas, um dia, quero poder lembrar-lhes que o avô é muito melhor que o pai. Ou então vais ser mesmo tu ainda a lembrar-lhes.
A vida está já no ocaso, bem sabemos, mas até aí podias buscar inspiração no Phileas Fogg do Verne. Quando tudo parecia perdido, afinal ele tinha ganho um dia e ainda foi a tempo. Talvez os teus 80 anos tenham sido só 70 ou 60 e ainda tenhas muito para andar. E não haverá nenhum Detetive Fix que te possa deter.
Para o ano cá estarei para voltar a abraçar-te.
Gosto muito de ti.
Um beijo do tamanho do mundo.
Obrigado.

3 comentários:

filomena disse...


Miguel, a foto é inspiradora! O texto sublime! A sensibilidade e a verdade de mãos dadas.
Parabéns para o senhor da cartola e da bengala que, por sinal, tenho a honra de conhecer!


E já agora, obrigada pelo texto que o Tiago ajudou a escrever... são outras verdades...
Boas férias para a família. Bj para a Rita, Tiago e André.

curva dos grilos disse...

Bom texto. Puro e emocionante! Um abraço.

Miguel Brandão disse...

Obrigado pelas palavras! Muito obrigado!