Nostalgia

13:06

O dia avança devagar. Quase parado. O tempo para viajar no Tempo parece sobrar. É sempre assim quando nos dispomos a caminhar para trás. O tempo é sempre muito. Demasiado. Basta querermos. Chega a ser tão grande que o próprio pensamento faz eco em qualquer direção. A ressonância é enorme.
Sentado em frente ao computador, neste momento, se não fosse uma pessoa, seria talvez uma espécie de nostalgia personificada.
Abro o dicionário e este diz mais ou menos isto: “Nostalgia: (...) Estado melancólico causado pela falta de algo ou de alguém”. Mais um clique, desta vez na Wikipedia, e as palavras não são muito diferentes: “Nostalgia é um termo que descreve uma sensação de saudade idealizada, e às vezes irreal, por momentos vividos no passado associada com um desejo sentimental de regresso impulsionado por lembranças de momentos felizes e antigas relações sociais. (...)”
Confesso, a parte das “antigas relações sociais” revolve-me as entranhas. Onde terei falhado? Não sei. Creio não o ter feito. Mas continua a mexer cá por dentro.
Há decisões difíceis e esta terá sido uma das maiores entre todas as que são grandes. A hora em que decidi dar a volta às voltas que o Tempo dá. Afinal de contas o Tempo, hoje e agora, sobra. Ou, pelo menos, parece. E é assim que vou tramá-lo. Hoje, finalmente, vou virar-te as costas, percebeste?

É por isso que se eu pudesse, este respirar fundo era um campo de futebol aos domingos de manhã. Não em Sinja mas antes na Portela. Mais pequenino e mais íntimo. E mostravas-me o mesmo sorriso da última sexta à entrada do liceu, lembras-te? Continua igualzinho, apenas com mais cabelos brancos. Ainda mais do que quando foste meu professor no ciclo e no liceu. Perguntaste-me pelo tornozelo e eu disse-te que parecia papel. Ias jogar futebol e eu estava a chegar para um concerto. Também mudei nestes últimos 25 anos. O meu cabelo está também agora mais branco. E trocámos um último sorriso enquanto dizíamos adeus.

Se eu pudesse, este cheiro a Primavera era o recinto da antiga escola primária que tão poucos conhecerão como eu. E dizias “cá vou eu” enquanto sacavas aquele cavalo na tua BMX que acabaria por correr mal, te furou a t-shirt e nos abriu os pulmões de tanto rir. Felizmente não te magoaste. Desculpa esta característica própria do ser humano de se rir dos males alheios.
Tenho saudades tuas, sabes? Desde esses anos vi-te apenas por mais uma vez. Foi já há algum tempo, a atravessar a praça, mesmo no coração da nossa vila. Não tive coragem de ir ter contigo e dar-te um abraço. Desculpa. Fiquei ao longe a olhar-te até desapareceres para dentro do centro comercial. Nesse bocadinho vi o rapazinho de há 25 anos atrás e outras tantas boas memórias. Talvez por isso me tenha detido sem ir ao teu encontro. Decidi conservar as memórias da forma imaculada que as guardo. Julgo assim ser mais feliz. Mesmo querendo muito ter-te agradecido.

Se eu pudesse, esta terra que seguro nas mãos era tudo menos um parque de estacionamento. Muito menos uma casa de escuteiros. Era, isso sim, o campo virgem de outrora de onde a tua avó tirou o punhado de terra que nos atirou na brincadeira enquanto regressávamos de mais um ensaio do grupo coral. Eu gostava muito da tua avó, sabias? E de ti e de todas as nossas boas histórias, sabias? Como aquela do “hóquei de praia” e a dos “Bryan Adams”. Sinto muito a tua falta. Quando ainda eras o Pujante. E quando eu ainda era eu. O Tempo é mesmo tramado. No outro dia, na igreja, quando cheguei e te cumprimentei, fiquei algum tempo a pensar nestas coisas. Gosto muito de ti, já disse? Agora tens menos cabelo e eu, lá está... Ainda tenho cabelo mas está mais branco. Gosto de te ver. Faz-me lembrar oitocentos e trinta e quatro episódios dos nossos melhores dias. E isso não tem preço. Nem tempo.

Se eu pudesse, este sol era um jogo de futebol de baliza a baliza. Como tantos que fizemos em que não podíamos defender com as mãos. Tenho saudades até das vezes em que a bola ia ao campo do outeiro ou até mesmo ao campo da seca onde a tua avó andava frequentemente de enxada na mão. A esta distância consigo ver-nos com aquela camisola que tinha um jogador estampado que as nossas mães fizeram iguaizinhas, uma para cada um.
Já viste como está o sol hoje? Digo-te que era capaz de sair agora mesmo, de onde estou, a correr até à escola primária. Sempre a correr. Sem parar. Só para jogar mais uma vez. E outra. E mais outra. E ainda outra. Sempre mais outra “última vez”. Bem sei que já não dá. Porque agora somos outros. O tua barba continua certinha mas está agora mais branca. A minha também está a começar a ficar branca mas está longe de ser certinha. As preocupações trouxeram também umas “peladas” que estão difíceis de ultrapassar. O Tempo teima em querer trazer-me ao presente mas consigo ainda recordar o meu coração a ficar cheio ao ver na semana passada as fotos que partilhaste das tuas lições de “bicicleta” ao teu irmão. E volto a lembrar aquele dia que também era de sol quando cheguei a Rossas com a minha bicicleta nova em folha que os meus pais me deram nos anos e que trouxe da Casinha da loja do tio do Tono. Depois de mim foste o primeiro a experimentá-la no recreio da escola. No tempo em que a frase “Deixa-me dar uma volta” era muito popular. 

Se eu pudesse, este teclado não era de um Mac. Era, isso sim, um Commodore Amiga. E voltávamos a matar naves alienígenas, a estilhaçar braços e pernas a gangues de rua, a disparar bolas pela boca de macacos ou a encaixar peças que iam caindo do céu da forma mais ordenada possível. E, no fim, como um bom jogo dos anos 80/90, acabaríamos por trazer a princesa a salvo para casa.
Esta semana limpei a minha bicicleta, sabias? Enquanto lhe passava o pano ia recordando aquelas retas inteiras de roda no ar. Lembro-me bem da tua bicicleta. Costumavas deixá-la no recinto da escola primária enquanto passávamos uma tarde inteira no sótão de minha casa a dar vida a milhentos heróis saídos das cores hipnotizadoras do monitor do Amiga. E a bicicleta lá ficava, muitas das vezes, guardada pelo pequeno Roberto que te pedia constantemente para o fazer. Sim, é verdade. O pequeno Roberto “das quintas” que agora já é grande e teve de fazer a vida para os lados de Lisboa.
A bicicleta está quase limpa, sabes? Mais uma passagem do pano do pó e fica pronta. Entretanto surge mais uma lembrança. Agora são os corredores do liceu que me querem ver a fraquejar. Mas eu não deixo. Ainda os conheço todos de cor. Deve ser por tê-los percorrido sempre contigo. Mesmo quando acabámos o 12.º ano chegámos a ir lá várias vezes os dois. Eu vinha de propósito do Porto, às quartas, mesmo levando uns ralhetes da minha mãe. Porque éramos amigos. Os melhores. Mas isso era antes, com o cabelo preto. Agora o teu está mais branco. Como o meu, diga-se.

Se eu pudesse, este abraço era o teu abraço. Como aquele que me deste quando acabou o jogo do Benfica com o Marselha em 1990 que ouvimos pela rádio na sala de nossa casa.
Sabes, sempre quis ser como tu embora soubesse que nunca conseguiria. Quem nasce Miguel nunca chega a Zé Mário. É um facto. Mas obrigado por teres sido um modelo para mim. Fez-me ser melhor do que aquilo que eu alguma vez seria sem te ter como exemplo. Como amigo. Como irmão.
Lembrar-te é voltar a ter o Alves, o Humberto Coelho, o Shéu, o Bento, o Nené, o Carlos Manuel e o Chalana na ponta da língua. E tantos abraços e brincadeiras na alcatifa da nossa casa de infância. Gosto de fechar os olhos e voltar a ouvir o “Cielito Lindo” que foi o grande hino daquela noite de Reis. E eu estava lá. Como também estava naquele Toyota Corolla branco que era do pai e que nos levava para a serra nas tardes de Verão juntamente com os nossos amigos. Tudo fazia com que ser feliz parecesse tão fácil. E, se calhar, até é. Mesmo que o teu cabelo esteja agora mais branco. Como o meu, diga-se.
Gosto muito de ti, já te disse?

Tenho que parar, sabes? Digo que o tempo passa devagar mas ambos sabemos que não é verdade. Ou não. Depende do que quisermos fazer com ele. Será?

13:07

0 comentários: