Um fim-de-semana com o coro do DeCA

Nota: Foto tirada do site do Diário de Aveiro.


Sexta-feira, Aveiro. 
É dia de sair um bocadinho mais cedo do trabalho para conseguir chegar a tempo ao ensaio geral na Universidade de Aveiro às 20h. Chego, ainda muito a tempo. Já dentro do Auditório, sentado no meu canto, dou conta que afinal a minha presença apenas era necessária às 20h30. Aproveito para descansar na minha cadeira enquanto ouço uns acordes de Liszt que me vão enchendo a alma. Pouco depois, do outro lado da sala, uma amiga larga momentaneamente os amigos mais chegados para me vir cumprimentar e perguntar pelo novo rebento que está a caminho. A alma engrandece à medida que reconhecemos nesses amigos atitudes que caracterizam os que são verdadeiramente grandes. 
Um a um, vão chegando os restantes colegas. Antes de cantarmos há ainda tempo para ver o “jogo mais difícil do mundo” no telemóvel ao lado. 
Ao final da noite Delius e Nietzsche estão já mais próximos e seguros. Enquanto se deixa um abraço de “até amanhã” há ainda tempo de trocar umas palavras com uma grande amiga de Arouca enquanto se aproveita para combinar a boleia para o dia seguinte. 

Sábado, Coimbra. 
A saída acontece ao início da tarde deixando tudo preparado em casa para a festa de anos da pequenina Rita. Toda a viagem é feita na companhia da Eva que me acompanhará na orquestra no concerto da noite. Já em Coimbra, enquanto se bebe um café, põem-se os assuntos em dia. Há tempo para se ser surpreendido por algumas novidades. A hora aproxima-se. Há que entrar na Sé Velha. Sou apanhado de surpresa quando alguém me vem dar os parabéns pela Rita. 
Já bem depois do ensaio de colocação, enquanto se espera pelas senhas de jantar, olham-se as ruas. São estreitas mas sem estrangular. Parecem antes aproximar. Como o par de namorados que troca um beijo enquanto passa. Uma parede traz à lembrança o grande Zeca, o Afonso, que terá vivido por ali nos seus tempos de mocidade. Todas as janelas parecem sorrir ao largo da Sé fazendo lembrar autênticas bocas de cena; o sítio perfeito para os trovadores soltarem acordes às suas donzelas em juras de amor capazes de rivalizar com as que foram trocadas entre Pedro e Inês. Os meus colegas vão trocando frases de quem se quer bem. Momentos que vou guardando para a eternidade. 
A caminho da cantina, na companhia dum amigo, lembro os tempos da minha primeira universidade enquanto vejo uma tuna a atuar para um grupo de caloiros. As lembranças vão sendo assaltadas pelos saraus inigualáveis de Ciências e pelo som do “Sonho de um Poeta” da Javardémica que ainda trago na ponta dos dedos. Boas velhas memórias que foram novas noutros tempos. Enquanto me detenho, por momentos, para encher um pouco mais a alma, reparo numa mãe com uma das mãos sobre os ombros do filho pequeno enquanto a outra aponta para os bandolins. O menino esboça um sorriso. A mãe sorri ainda mais ao olhar o filho. 
O regresso à Sé começa com uma subida de 1.ª categoria composta por um número interminável de degraus que me julga um estudante de vinte anos quando, na realidade, já estou à porta dos quarenta. Passado esse teste com distinção há ainda tempo para um cerveja, devidamente acompanhado, enquanto se prepara a voz para o grande concerto. 
No fim da noite, Delius e Nietzsche devem estar satisfeitos com a nossa atuação e a sensação é a de dever cumprido. 
Já em Arouca atira-se um até amanhã à companheira de viagem e, já em casa, encosta-se a cabeça no travesseiro com o pensamento no dia seguinte. 

Domingo, Aveiro. 
O Teatro Aveirense traz-nos uma perspectiva diferente. Na sala de aquecimento o espaço é tal que somos convidados a deitarmo-nos no chão. E é assim, com todos à mesma altura, de costas voltadas para o mundo, que passam pela minha cabeça as imagens do “Clube dos Poetas Mortos” quando o professor Keating pede aos alunos para que subam à secretária para olharem as coisas de diferentes perspectivas. Mente sábia. 
Nos momentos de descontração antes do concerto perguntam-me pela Odete e pelo bebé. Sou um felizardo. Sugerem-me temas para as minhas composições e sinto que é desta que este empurrãozinho vai materializar as milhentas ideias que fervilham na minha cabeça. Mais não posso do que ficar grato. Por momentos, lembro as palavras do António Zambujo no coliseu quando dizia ao Miguel Araújo que para um criador todos os dias são dias de trabalho. 
Pelo piano ao fundo da sala vão passando vários colegas trazendo um som de fundo convidativo enquanto ligo para casa a confirmar se está tudo bem. 
O concerto é marcado por uma nota original do meu colega de fila que nos faz rir por algum tempo. No final alguém vai trauteando a música do saudoso “Justiceiro” que eu imediatamente reconheço e que tão boas memórias desperta em mim. É bom saber que não somos os únicos a recordar tais preciosidades. 
Os últimos 60 km percorridos no regresso definitivo a casa é feito ao som do Oceano Pacífico da RFM que me traz o fantástico “Tudo o que eu te dou” na hora em que abro a garagem de casa. Deito-me no conforto da minha cama, encostadinho à mãe dos meus filhos, com os olhos postos na aula de composição às 9h da manhã seguinte. 
E o concerto acabou. 

Miguel 

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