Até já...

Foto 1:
Membros da Banda Musical de Arouca que foram presenteados com uma medalha de "Mérito e Dedicação" pelos mais de 25 anos prestados ao serviço da Banda.

Foto 2:
Repolho, Cajarana, Cebolinha e Pepé na Festa do Senhor de Urrô de 2015

“A vida é como um cobertor demasiado pequeno. Puxa-se para cima e fica-se com os pés de fora, sacudimo-lo para baixo e ficamos a tremer de frio nos ombros; mas as pessoas bem dispostas conseguem encolher os joelhos e passam uma noite muito confortável.” 

Eis que é chegado o momento em que os joelhos começam a doer e queremos esticar um bocadinho as pernas. Mas sempre sem perder a boa disposição. 
Com 29 anos de Banda, na hora da partida, não é o gosto pela música que mais nos move. Porque dessa forma nunca partiríamos. A dor maior do parto para uma nova vida é olharmos aqueles que ainda lá estão e que connosco foram envelhecendo dentro da mesma Banda ao longo de todo este tempo; vê-los e dizer-lhes adeus. Rasga bem fundo cá por dentro. E ficamos um bocadinho mais tristes porque é precisamente com estes que deveríamos querer continuar. Para sermos ainda mais felizes e durante mais tempo. Mas depois olhamos para o outro lado e sentimos que estamos a fazer o que tem mesmo de ser feito. Porque vamos ser isso mesmo: mais felizes. De outra forma. A lembrar um anúncio alemão que está muito na moda por estes dias. 
É por isso que hoje, na hora da despedida, gostava de dizer-te tantas e tantas coisas. Como um texto que li há já algum tempo do Ricardo Araújo Pereira e onde procuro inspiração e, já agora, copio a ideia base. 
É por isso que hoje gostava de dizer-te que não me recordo (nem sinto especial prazer) do dia em que o meu pai, juntamente com o Sr. Soares, me levou pela primeira vez à casa de ensaio, no seu Toyota Corolla 1200 branco. Não me recordo sequer do meu tio ter fumado três cigarros dentro do carro até aparecer o Renault 5 preto do Valdemar. 
Gostava de dizer-te que não me desmancho a rir de forma descontrolada de cada vez que me recordo daquela festa em que o Sousa borrou as calças quando foi fazer as necessidades de forma aflitiva num canto qualquer e, à tarde, apareceu de calças de ganga azuis e com aquele riso maroto tão característico dele enquanto contava toda aquela peripécia. 
Gostava de dizer-te que não faço a mínima ideia do que são “borboletas” e que não recordo, quase uma a uma, todas as que foram feitas por esses arraias fora, por miúdos e graúdos com a nossa mui nobre farda vestida. Nem recordo com especial sabor esta última Feira das Colheitas onde o Cajarana serviu de cobaia e explicou aos mais novos como se fazia, entre outros, os famosos “drones”, como ele costuma dizer, de forma "moderadamente espetacular". 
Gostava de dizer-te que não me lembro sequer das 354 vezes que o Valdemar me terá dito que eu tinha cara de bombardino, uma das quais em frente ao saudoso Sr. Noites que, depois de me olhar de alto a baixo, lá disparou: “Esse aí tem cara de tudo”. 
Gostava de dizer-te ainda que uma das minhas saídas preferidas não foi aquela em 1996 onde fomos a Coruche e, durante a viagem, se inventou o famoso “grijo” que o “Nazi” popularizou e que surgiu apenas porque estávamos a passar junto a uma tabuleta com indicação para Grijó. Podia ainda dizer-te que não faço a mínima ideia se essa viagem foi feita connosco a cantar o “Vira-Vira” dos Mamonas Assassinas onde trocávamos a palavra “suruba” por “Xarula”. Nós lá saberíamos porquê. E também não faço a mínima ideia (nem sequer tenho saudades) de irmos parte da viagem a picar o “Nazi” com um alfinete onde só parávamos se ele pronunciasse uma certa quantidade de palavras por uma ordem pré-definida por nós de forma mais ou menos aleatória. 
Queria também dizer-te que não vou sentir qualquer falta daqueles almoços e jantares com o Repolho, o Pepé e o Cajarana que me fazem a alma maior. 
Queria dizer-te ainda mais. Queria dizer-te que não dou qualquer valor ao grupo dos “Arrumadores da Banda” e que não acho que tenha sido a melhor ideia que alguém teve dentro desta nossa Instituição nos últimos tempos. E queria dizer-te que não foi, muitas vezes ainda antes do sol raiar, ou então já fora de horas e com algumas caixas sobre o “lombo” que passei os meus melhores últimos momentos na Banda. 
Gostava também de dizer-te que a cada festa feita ao serviço da Banda nunca sinto a falta daqueles que já lá não estão nem me deixo ficar sentado, no meu canto, a recordar muitos dos bons momentos passados com eles quando eu ainda era muito diferente do que sou hoje. 
Queria ainda dizer-te que, para mim, a palavra “Valência” mais não significa do que um clube que milita na primeira divisão espanhola e não me traz uma das melhores memórias enquanto músico da Banda. Queria dizer-te que não volto a ver o filme todo enquanto fecho os olhos por pequeninos momentos. Não volto a sentir o teu abraço, não lembro o hotel, a viagem, o ter o enorme Repolho ao meu lado, os “arrozitos” do Figueiredo e, sobretudo, a célebre canção que compus no início da viagem de regresso com a guitarra que alguém teve a feliz ideia de levar e que fez com que chegasse a Arouca completamente sem voz. Não me lembro sequer de todos os músicos, um a um, terem cantado em alta voz, na traseira (salvo seja) do autocarro: “Está tudo f%...”. E queria dizer-te ainda que não senti qualquer orgulho quando o Movilar (grande Movilar) subiu ao palco para receber um prémio que era nosso e, por isso, também um bocadinho meu; talvez a fatia mais pequena. E queria realçar que não fico com um sorriso nos lábios de cada vez que me lembro destes dias e que não volto a ler várias vezes o texto que na altura escrevi neste mesmo blogue no dia 19 de julho de 2014 pela madrugada dentro, de forma solitária, no meu quarto de hotel, texto esse que celebrizou a querida frase: “Se eu soubesse escrever”. 
Queria dizer-te que os almoços em casa do grande amigo Cajarana não são já uma saudade e que ainda hoje não me cai um lagrimazita pelo canto do olho quando sei que são também estas coisas que estou, momentaneamente, a deixar para trás. 
Queria dizer-te tudo isso e muito mais, mas não posso. Não posso. Não posso mesmo. E não posso porque, se o fizesse, estaria a mentir. 
A Banda Musical de Arouca, aquilo que ela realmente é, está de tal forma entranhada em mim que não poderia, nem queria, nem conseguiria vivê-la de outra forma. Nunca com uma intensidade menor. É por isso que tenho que te largar a mão por uns tempos. De olhos postos no regresso. Mesmo que este, porventura, nunca aconteça. Porque dói mais se for de outra forma. 
A subida ainda é longa, lembras-te? Confesso: tirei os olhos da roda da frente. E ao fazê-lo dei conta que, por agora, não dá mais. Fica adiado o sonho de vestir a farda juntamente com os meus filhos. É chegada a hora da partida. Ouço mais perto o relógio que a vai dar. Felizmente tenho o consolo de guardar boas memórias em número suficientemente grande para me sentir eternamente pertença dessa grande família que é a Banda Musical de Arouca. 
Claro que num percurso tão longo também tive dias e memórias menos boas como aquela em que no final de um ensaio chorei em casa como uma criança até bem depois das 4h da manhã. Mas hoje não lhes dou hipóteses. Faço como a Mafalda Veiga e “guardo apenas o que é bom de guardar”. E há tanto de bom para guardar. Tanto. Memórias e pessoas. Pessoas que marcam e às quais espero voltar. Porque o tempo ajuda a criar laços mas a amizade e o amor é que os tornam fortes. E foram tantas as viagens de autocarro em que tudo se fortaleceu. 
Sábado, no concerto de Natal, é o dia de vestir a farda pela última vez. Ainda com mais orgulho de quando o fiz pela primeira vez, no dia 1 de Abril de 1988. Para mim tudo é já uma enorme saudade. 
E é assim que aproveito para terminar com as palavras que a Odete em tempos me dispensou e que hoje parecem fazer todo o sentido. Acredito profundamente que é a melhor forma de te abraçar e dizer adeus. 

“Uma vez estava a pensar na ressurreição… Comecei por pensar na de Jesus, mas depois continuei a pensar em como todos ressuscitamos. Mozart e Beethoven ressuscitaram na Música; Picasso na Pintura; Camões e Fernando Pessoa na Literatura; outros nos Descobrimentos, na Escultura, na Moda, no Cinema, no Futebol, na Ciência, nas Tarefas Domésticas, na Fábrica, na Família... Jesus no Amor, nas opções humanizantes que nunca tornaram ninguém mais pequenino.… Podemos não ter os dons da sabedoria que imortalizaram nas Ciências e nas Artes tantos homens e mulheres. Mas todos temos talento para a Amizade e o Amor. Dando-lhes uso, o Fernando torna-se mais Pessoa e nós também!” 

Obrigado a todos por hoje eu ser mais pessoa. Mais músico. 

Até já. 

Cebolinha 


“A despedida é tão doce tristeza que continuarei a dizer “boa noite” até que seja de manhã.” 

William Shakespeare 

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