“Sou alta” - diz a Amizade.
“Sou profundo” – diz o Amor.
E lembram bem, na verdade,
Montanha e vale, ao sol-pôr,
Pois antes que o sol resvale
Ao pélago, onde se banha,
Já dorme em sombras o vale
E há ainda sol na montanha.
As palavras são do poeta João Saraiva. Ainda não as conhecia em 1992 mas hoje parecem fazer todo o sentido.
Quando escrevo este texto estou só. Há uma cadeira encostada a uma parede de pedra e eu encostado à cadeira. E uns pássaros lá ao fundo a mudarem de árvore em árvore e de galho em galho. De vez em quando picam o chão mas depois voltam ao mesmo lufa-lufa. Estes simples pormenores, juntamente com o tempo airoso que se apresenta, não demoram a levar-me, novamente, para outros tempos. Ai, saudade...
A varanda da casa dos meus pais foi, em tempos, um lugar privilegiado. Mesmo já sem o sabor de outros tempos, era a essa varanda que recorria para ficar a olhar para o antigo recinto da escola primária. Só e apenas isso. Antes das grades e, sobretudo, antes do necessário Polo Escolar. Porque mesmo despovoado trazia memórias que não se conseguem escrever. Apenas sei que revolvem as entranhas, enchem o coração e espremem a alma até a última lágrima cair ao chão. Dentre elas, as melhores serão, porventura, as do Verão de 1992. Aquele em que, para além dos amigos do costume, trouxe também os amigos “franceses” Daniel e Jorge (e as suas primas) que durante todo o período de férias marcavam presença nesse recinto sagrado desde os primeiros raios de sol até ao céu ficar escuro como breu onde até a própria noite já há muito se teria deitado.
Para além do meu irmão, do Pedro, do Tono, do Carlos, do Sérgio, do Paulo das Silveiras ou do João do Selmo, tínhamos nessa altura também o Miguel “Confiança” que embora estivesse por Rossas ainda há pouco tempo já se tinha adaptado aos novos colegas e cedo entrou connosco em muitas aventuras.
Dessa varanda vi, vezes sem conta, a frase “Cá vou eu” que se tornou célebre e nós lá saberemos porquê. O que nos rimos com isso. E aquele dia em que cheguei com a minha bicicleta novinha em folha e me pediste para dar uma volta... Dói um bocado vê-la abandonada na garagem do meu pai e com as mudanças todas estragadas. Um dia destes mando-a consertar só para ter o prazer de conseguir fazer novamente o percurso da Barroca até casa dos meus pais com a roda da frente no ar. Isto, se ainda mantiver a destreza desses dias. Duvido. Mas sonhar não tem limites, não é?
Os jogos de baliza a baliza sem defender com as mãos era uma das brincadeiras favoritas e tantos foram os episódios de buscar a bola ao campo de milho por chutar com força a mais. E eu lembro algumas dessas histórias e as entranhas voltam a revolver cá dentro.
Depois havia também a “ida às cerejas” que certa vez acabou com uma aventura por meio de pirilampos. E lembro-me de algumas vezes levar uma mesa para o coberto onde passávamos a tarde a jogar ao sobe e desce. Esse Verão trouxe ainda a particularidade de trazer umas aventuras extra que obrigaram a fugir por entre o milho.
Hoje, a esta distância, sei que o Verão de 1992 nunca deveria ter terminado. Nunca. Mas terminou. Nem o recinto sobreviveu. Resta apenas a varanda, ainda, para avivar um pouco a memória, voltar a ter amigos e encher o coração.
Os pássaros voltam a mudar de galho lá ao fundo. É hora de voltar ao presente. Antes de me “desligar” do passado, enquanto me levanto, volto a lembrar as palavras de João Saraiva e volto a cabeça para trás para me fixar nas montanhas. Talvez não seja descabido continuar a viver desta forma. Afinal de contas, “há ainda sol na montanha”.
0 comentários:
Enviar um comentário