Evocando a Palmirinha da Póvoa

Hoje o telefone tocou. Por coincidência, ao mesmo tempo que o som do sino da igreja entrava pela casa dentro. Do outro lado estava uma voz amiga a cumprir o triste dever de me informar da partida da "Palmirinha da Póvoa".
Era ainda uma criança quando conheci a Palmirinha. Foi pela mão da minha mãe (literalmente) que cheguei ao meu primeiro ensaio de teatro. A peça, da qual já não recordo o nome e que seria protagonizada apenas por crianças, nunca viria a chegar a cena. Mas a Palmirinha, felizmente, não deixaria de continuar a tentar. A acreditar. Por várias vezes a receita repetia-se. Lançava-se as sementes à terra. Uma nova peça ficava na calha. Até que chegou uma altura em que as sementes começaram a dar fruto.
Sob a orientação da Palmirinha entrei em vários espetáculos de teatro. Primeiro em participações em pequenos números, entreatos ou cançonetas e, um pouco mais tarde, em pequenos papéis nas peças de teatro protagonizadas pelos atores mais talentosos que Rossas tinha na altura. Foi assim que comecei, "amparado" pelo Fernando Antunes, pelo Fernando do Souto, pelo Fernando Pinho, pelo Zé Mário, pelo Arménio, pela Isabelita, pelo Alexandre, pelo Zé António, pelo Mário, pela Carmo ou pela Vira. Tudo isto ao lado dos amigos da minha idade como o Tono, o Pedro, o Rui, o Sérgio ou a Belinha. A minha mãe fazia o ponto e a Palmirinha era a encenadora. Parecia ter sempre a resposta certa para todas as dúvidas de "representação". É um talento com que se nasce e a Palmirinha trazia-o com ela como quem leva uma criança pelo colo.
Era ainda muito novo para perceber os sacrifícios que a vida nos obriga a fazer. Com os pais doentes e uma vida de trabalho, a Palmirinha era quase sempre a última a chegar aos ensaios. Era já com os atores a contracenarem que entrava pela porta, apressada, tirando os livrinhos de uma pequena saquita que sempre a acompanhava. Os dedos das mãos mostravam bem as marcas duras de uma vida de trabalho. Na década de 90 desentendemo-nos. Tivemos visões diferentes daquilo que poderia ser o futuro do Grupo Cultural e Recreativo de Rossas, associação da qual sou o atual presidente e de que a Palmirinha, sócia n.º 4, para além de primeira encenadora, foi fundadora. Uma das principais, acrescente-se.
Carreguei comigo durante bastante tempo o fardo de ver a Palmirinha afastada do mundo do teatro. Embora sempre para o mesmo lado e mais ou menos à mesma velocidade, o mundo dá muitas voltas. Foi assim que ainda no tempo em que o Mário Soares presidia ao GCRR se falava em homenagear a Palmirinha. Um responsabilidade que herdei aquando da minha primeira eleição a 22 de outubro de 2017. Nessa altura, Palmirinha, voltámos até a ensaiar um orfeão. Criámos a revista "APARTE" que fiz com que os exemplares lhe chegassem às mãos. Recordo, agora com saudade, a noite em que me telefonou a agradecer o gesto e se teria de pagar alguma assinatura. O que eu me ri com isso, Palmirinha. Tentei explicar-lhe que a honra estava do nosso lado ao poder oferecer-lhe algumas memórias escritas em papel. Creio que foi a primeira vez que falei consigo a dar-lhe conta da intenção de lhe fazermos uma homenagem. Chegámos a ter encontro marcado em sua casa para eu lhe explicar o que estaríamos a pensar fazer. Levaria a Vira comigo para falarmos mais à vontade. Infelizmente, a Palmirinha haveria de ter o AVC no decorrer dessa semana e as coisas esmoreceram. Lembro-me que nesse telefonema, antes de desligar, me recomendou: "nunca deixes o grupo desviar-se daquilo para o qual foi criado: cultura e recreio". Eu sorri e respondi: "fique descansada. Não esqueço".
Honra me seja feita, se há algo que repito constantemente nos nossos espetáculos e nos nossos ensaios é que devemos honrar os que nos precederam. Os que sonharam antes de nós.
Quem ajuda a fundar uma associação e dá movimento ao teatro, à cultura e ao recreio durante tantos anos, com tanta dedicação e envolvendo tanta gente, não deveria partir assim, de forma apagada e quase solitária.
Hoje o sino tocou.
Por esta altura a Palmirinha estará já em cena, num outro sítio, a preparar um novo espetáculo juntamente com o Sr. Brandão da Seca, a Celestinha da Portela ou o Sr. Silva dos Carreiros.
Por momentos, lembro as palavras de um texto escrito na extinta Defesa de Arouca que evocava o saudoso leiloeiro "Galo". Dizia esse texto que quem vive assim não deveria partir desta forma. Deveria, isso sim, morrer no fim de um verso ou no refrão de uma canção. Acrescento eu: "e com uma ovação de pé".

Miguel Brandão
Sócio n.º 9 e atual Presidente do Grupo Cultural e Recreativo de Rossas

1 comentários:

RuiGARRIDO disse...

Tu realmente é cada história...

Lembras-te tão bem das pessoas daqueles tempos já um pouco longínquos.

Algumas dessas pessoas, infelizmente já partiram, outras nem chegamos a conhecer.

Como o tal famoso Leiloeiro 'Galo', chegaste a conhecer? (quer-me parecer que não, pois nasceste em 1976, Ele já tinha morrido há uns anitos, também quem nasceu em 1894... já teria de ter uma idade avançada, mas não chegou lá).

E seus descendentes, conheces alguém?
RG