Filho, não trazes, por acaso, uma faca?

Olá mãe.
Hoje estás de parabéns. São 80 anos, uma idade bonita, a condizer contigo.
O dia amanheceu bem cedo e, à hora habitual, lá estava eu juntamente com os meus irmãos para te ajudarmos a levantar e te darmos o pequeno-almoço. Um ritual que se repete já perdido no tempo e que hoje em tudo foi igual. Ou por outra, quase tudo... Porque ao despedir-me, mesmo sem que ninguém notasse, toquei um bocadinho mais na tua mão.
Foi guiado por essa mão que entrei pela primeira vez na escola primária onde me apresentaste os amigos Eduardo e Paulo Daniel. Não eram uns meninos quaisquer. Eram amigos bons que se tornaram pessoas boas cujo percurso vou acompanhando à distância e que me fazem constantemente lembrar de ti.
Foi também guiado por essa mão que saía de casa aos domingos pouco depois das 7h da manhã a caminho da igreja. Quando comecei a tocar os primeiros cânticos, nas manhãs de inverno, carregavas tu os livros para que pudesse conservar as minhas mãos quentinhas dentro dos bolsos e não me atrapalhar quando chegasse a hora de tocar. Nos dias de hoje, a cada domingo que passa, de cada vez que abro os livros para tocar na igreja, lembro-me constantemente de ti.
Agarrado a essa mesma mão fui tantas vezes à feira na vila quando ela ainda se fazia por outros locais bem diferentes dos de hoje. As calças eram o produto mais requisitado mas ficam na memória aquelas chuteiras da marca “Rei” para usar no recém-criado torneio de futebol do parque. A cada dia 5 e 20, quando chego à vila para trabalhar na Academia e levo mais tempo a estacionar porque há feira, nesses segundos enquanto procuro estacionamento, lembro-me constantemente de ti. Sempre.
Agarrado a essa mesma mão que tantos mimos me dispensou, fui, pela primeira vez, a um ensaio de teatro. Os papéis eram passados por ti, lembras-te? Tudo à mão e com caneta azul e vermelha. Tenho todos organizados numa gaveta como quem guarda o melhor de nós mesmos. E a cada ensaio, a cada nova peça, lembro-me constantemente de ti. Se ainda conseguisses discernir as coisas com naturalidade estou certo que ficarias feliz de saber que atualmente sou o presidente do GCRR.
Essa tua mão levou-me ainda vezes sem conta nas visitas que fazias às tuas irmãs a Sinja e à Lomba onde consigo ainda ver-te com um xaile bege que usavas com frequência. Numa altura em que os marcos dos hectómetros ainda estavam todos intactos, por vezes largavas-me a mão e eu corria até ao próximo marco para me sentar nele à tua espera enquanto vinhas ao meu encontro a sorrir. Sabes, de cada vez que ligo o pisca do carro para regressar a casa, lembro constantemente essas pequenas corridas de 100 metros.
Foi ainda essa tua mão que me salvou a vida naquele dia 17 de julho de 1991 quando pensava que cada respiração iria ser a última. E tu deste-me de novo à luz nesse novo parto que moldaria a minha vida para sempre.
Gostava de conseguir recordar contigo todas estas memórias e tantas outras que trago comigo. Bem sei que já não te recordas quem sou nem sequer do meu nome. Mesmo assim, há dias em que venho para casa com um sorriso maior, como aquele em que chamaste pela Isabelita. Gostamos muito de te ter connosco.
Neste dia tão especial trago-te um texto do antigo livro de leitura da escola primária, lembras-te?

Filho és, pai serás

Há muito tempo, num país distante, um homem, vendo que o seu pai já era velho e não podia trabalhar, resolveu livrar-se dele.
Assim, num certo dia de Inverno, pegou numa manta e numa broa e convidou o pai a acompanhá-lo até ao cimo de um monte.
Chegado lá, o filho disse ao pai que não o podia alimentar e que, por isso, ali o deixava.
O pai, de lágrimas nos olhos pela tristeza de se ver assim tratado pelo filho, ainda teve forças para lhe perguntar:
- Filho, não trazes, por acaso, uma faca?
- Para que a quer, meu pai?
- Olha, filho, lembrei-me de cortar esta manta e esta broa ao meio para que leves uma parte para casa.
- Para quê, pai? – perguntou o filho, intrigado com a atitude do velho.
- É para o teu filho te dar quando fores velho como eu e já não puderes trabalhar...
O filho olhou o pai e, compreendendo a lição que este lhe dera, chorou de arrependimento e trouxe-o de novo para casa onde o tratou com carinho até à hora da sua morte.

Cá em casa não são precisas facas, mãe. Todos os dias te colocamos uma mantinha sobre o corpo para que passes o dia mais quentinha e confortável.
Em tempos, na minha meninice, costumava perguntar-te:
- E se eu não fosse desta casa?
Respondias-me que eu era teu filho e que, por isso, tinha de ser desta casa. Eu insistia com frequência e tu acrescentavas que se eu não fosse desta casa me ias buscar onde eu estivesse. Como eu não era fácil de convencer lembro-me de perguntar:
- E se tu não soubesses o caminho?
Dizias-me que sabias os caminhos todos e que me ias buscar onde eu estivesse porque eu era desta casa.
Hoje passas os teus dias sentada num cadeirão e sou eu que quero dizer-te que se tu não fosses desta casa era eu que te ia buscar onde quer que tu estivesses.
Gosto muito de ti e quero passar todos os dias contigo a encher o saco velho da memória. Porque há-de chegar o dia em que terei de o abrir e será muito melhor encontrá-lo bem cheio.
Obrigado por me teres levado sempre pela mão.
Um dia hei-de voltar a deixar-me ir por onde me levares. Hoje pode muito bem ser esse dia.
Gosto muito de ti. Gostamos. Mesmo que já não saibas quem nós somos. Mas nós sabemos bem quem tu és. E isso faz toda a diferença.
Tenho muitas saudades do teu colo.
Parabéns.

Do teu filho mais novo,
Miguel

6 comentários:

Zeta disse...

Amei demais.

RF disse...

"Gosto muito de ti e quero passar todos os dias contigo a encher o saco velho da memória. Porque há-de chegar o dia em que terei de o abrir e será muito melhor encontrá-lo bem cheio."
Sobre a minha família é nisto que penso todos os dias! Bem haja aos nossos pais pelas memórias boas que nos permitiram e permitem ter! E bem haja pelas tuas palavras, que são uma grande lição de vida. Beijinhos

Unknown disse...

Adorei imenso este AMOR

AMGF disse...

Obrigado Miguel pela meia dúzia de lágrimas que humedeceram os meus olhos ao ler o seu texto. Um texto belíssimo, comovente, e uma definição sublime do que é o amor.

AMGF disse...

Obrigado Miguel pela meia dúzia de lágrimas que humedeceram os meus olhos ao ler o seu texto. Um texto belíssimo, comovente, e uma definição sublime do que é o amor.

Luísa Soares disse...

As tuas palavras são sempre especiais! Não há um único texto teu que não me emocione. Bjinho grande para a Família Soares Brandão e em especial para a tua Mãe. ��