O bisavô, o avô e o neto

 

Olá Hélder.

O teu bisavô, o Sr. Brandão da Sêca como carinhosamente era conhecido, era um homem simples. Dizem-me que ia de bicicleta para o seu trabalho no Grémio da Lavoura e que era humilde e de bom trato. Sabia umas coisas de música que em boa hora transmitiu aos filhos e que usou para engrandecer as noites de teatro em Rossas desde os anos 20 de século passado, quando o palco não ia além de umas tábuas improvisadas por cima do lagar onde se pisavam as uvas. Falam-me do seu talento ímpar em cima do palco e vão enumerando nomes de peças, cançonetas, entreatos e operetas onde a todos facilmente e de forma natural arrancava um bom par de gargalhadas. E que foi ator, ensaiador e encenador. Dizem até que ajudou a fundar o Grupo Cultural e Recreativo de Rossas do qual és hoje o presidente. É sempre com muito carinho e com o coração carregado de afeição que as pessoas se abeiram de mim para evocar o Sr. Brandão da Sêca. E falam-me dessas grandes noites, da ribalta, do subir o pano e disso tudo. Mas há no meio de todas essas interjeições um denominador comum. Todos esses relatos fazem o paralelo com o seu dia-a-dia: “ele era assim também em casa ou na rua”. E logo testemunham as graças que fazia, o sorriso que transportava e as partidas que gostava de fazer como aquela do escaravelho da batata que mais não era que uma artimanha com arames dentro de um envelope para abrir um riso rasgado nas pessoas. E estas coisas eu fui capaz de testemunhar já nos seus últimos anos de vida. Um autêntico privilégio.

Depois há ainda o teu avô, o prof. Mário. Não herdou do Sr. Brandão da Sêca o talento da representação, mas participou igualmente em inúmeras noites de espetáculo. As cançonetas, as operetas, as danças e tudo mais que fosse usado para enriquecer qualquer récita, tinha no som da viola, do banjo ou do acordeão o toque delicado do teu avô. Foram muitos os arranjos, as criações, as vozes e até um orfeão saídos da perspicácia do teu avô. E também ele, à semelhança do teu bisavô, passou o seu conhecimento aos filhos. De tal forma que nas férias grandes havia até um horário de estudo diário estipulado para cada um, nos mais diversos instrumentos: viola, banjo, acordeão e piano. O teu avô chegou, imagina tu, a desenhar e criar cenários para alguns dos espetáculos. Mas há aqui novamente algo em comum com o teu bisavô. As pessoas vão-me falando da forma como o teu avô leva a vida, dos cuidados que tem com a tua avó e da sua entrega desinteressada à comunidade durante largas dezenas de anos.

É provável que nenhum deles tenha levado o seu talento para fora das fronteiras de Arouca. Mas os dois, cada um à sua maneira, acabaram reconhecidos pelas suas gentes. Também pelo seu talento, mas sobretudo pela sua essência.

Não me canso de repetir as palavras que a tua tia Odete certa vez me dispensou:


“Uma vez estava a pensar na ressurreição… Comecei por pensar na de Jesus, mas depois continuei a pensar em como todos ressuscitamos. Mozart e Beethoven ressuscitaram na Música; Picasso na Pintura; Camões e Fernando Pessoa na Literatura; outros nos Descobrimentos, na Escultura, na Moda, no Cinema, no Futebol, na Ciência, nas Tarefas Domésticas, na Fábrica, na Família... Jesus no Amor, nas opções humanizantes que nunca tornaram ninguém mais pequenino.… Podemos não ter os dons da sabedoria que imortalizaram nas Ciências e nas Artes tantos homens e mulheres. Mas todos temos talento para a Amizade e o Amor. Dando-lhes uso, o Fernando torna-se mais Pessoa e nós também!” 


És um rapaz cheio de talento. Um orgulho para qualquer arouquense. Ainda mais para alguém como eu, que te vi nascer e contracenei contigo na tua estreia em palco, tinhas tu apenas alguns meses de vida. Mostra por esse país fora todas essas coisas que sabes fazer bem. A tua faceta de ator e de autor; de músico e de compositor; de guionista e realizador (temos de fazer uma nova temporada de “Curtas & Grossas”). Mas mostra isso sempre com o entusiasmo de quem percorre o caminho simples e estreito de Sinja até ao Paço. E tenho a certeza que um dia o povo de Rossas também vai fazer memória de ti: pelo teu talento e, sobretudo, por aquilo que és. E se tiveres um bocadinho de sorte, conseguirás um nome numa rua como o teu bisavô ou vais vê-lo estampado num monumento de homenagem ou na porta de uma biblioteca como o teu avô. Porque isso acontece também a quem tem talento, mas sobretudo a quem tem uma personalidade ainda maior do que o seu talento.

Gosto muito de ti. Gostamos.

Um abraço.

 

Teu tio,

Miguel Brandão

10 comentários:

Inês Soares disse...

Que texto incrível! É emocionante ver como o talento flui naturalmente através das gerações, desde o bisavô até ao avô e agora no bisneto. Não há dúvida de que a herança familiar vai muito além de traços físicos ou bens materiais; ela carrega consigo dons, habilidades e paixões que se manifestam de formas únicas em cada geração. Parabéns ao sobrinho por honrar essa linhagem de talento e ao tio que também as honra e por reconhecer e celebrar essa bela conexão entre passado, presente e futuro. Que essa herança continue a inspirar e a brilhar!

Anónimo disse...

👏👏👏👏👏

Alexandre Noites disse...

Muito bem dito, como sempre!
Só faltou dizer que a família também é ótima na matemática e no futebol. 😁
Um grande abraço para todas as gerações!

Anónimo disse...

👌👌Lindo ❤️

Anónimo disse...

As palavras quando escritas, ficam a fazer história e o testemunho do tio é o conto de uma linda história verdadeira e testemunhada por muitos. Parabéns ao Helder, pelo talento, ao tio pelo que escreveu

Anónimo disse...

Simplesmente maravilhoso, lindo texto! Beijinho grande para o Hélder e familiares! ❤️🫲🎻

Anónimo disse...

Não conheço o Hélder pessoalmente mas reconheço-lhe o talento e a coragem por fazer diferente. Por fazer mais e mais, por ser fora da caixa e fora de série!
No entanto, conheço-te a ti, Miguel, desde os meus tempos de menina. Creio que o primeiro grande impacto que tiveste na minha pessoa foi enquanto professor de solfejo. Lembro-me perfeitamente quando gentilmente fotocopiaste o livro de solfejo para cada aluno, para que não andássemos com folhas soltas a cada semana. Ainda hoje olho para o meu livro de solfejo e admiro a artística rubrica que fazias questão de marcar em cada lição passada.
Posteriormente fomos colegas de banda, onde fui conhecendo a famosa figura do Cebolinha e aprendi o verdadeiro significado de espírito de grupo. Foste, juntamente com outros bons colegas, essencial para o meu crescimento enquanto ser humano e só te posso agradecer por isso.
Anos mais tarde, pude conhecer um bocadinho do Miguel, pessoa simples, demasiado modesto e com um coração enorme! Tenho pena de não ter aproveitado mais o tempo para ouvir as suas sábias palavras nos intervalos das festas.
A todos os que tiveram a sorte de conviver com o Miguel, tenho a certeza que todos sentem uma saudade enorme desses momentos e lhe reconhecem a bondade e a simplicidade.
Que sorte tem o Hélder por te ter o seu ídolo como tio!
Um beijinho tende, Miguel :)

jcerca disse...

Mesmo sendo de "papel" este avião sempre consegue transportar para o presente, rumo ao futuro, belos exemplos de famílias que foram autênticos alfobres de arte, nos mais diversos aspectos, desde a música, ao teatro e à escrita. Felizmente que esse alfobre continua ainda a dar belos frutos ainda hoje e certamente que os continuará a dar para o futuro. Parabéns.

Anónimo disse...

MARAVILHOSO!!! TANTO TALENTO!!! Estou emocionada! Muitos Parabéns ao tio e sobrinho.

Anónimo disse...

Lindo... Muito lindo... Parabéns