* Foto tirada do hi5 da Nádia.
A nossa última caminhada…
Toc, toc, trrac, trric, toc, toc, trrac…
É assim que os sapatos vão cantando durante esta caminhada longa e lenta, ao tom do negro alcatrão da estrada. Com o teu rosto bem presente, neste largo silêncio que me vai preenchendo a alma, vou fazendo, nesta minha caminhada, quais discípulos de Emaús, uma autêntica experiência Pascal. É com a imagem das feições que traçaste em mim ao longo dos tempos, que me recordo de uma história partilhada há algum tempo atrás por alguém que me é muito querido e a quem estou, sobretudo agora, eternamente grato. E fala essa história em figos e figueiras… Fala em como quando queremos os figos melhores, não nos dirigimos para o alto da figueira… Pelo contrário!!! Espetamos o olhar contra o chão à procura daqueles que já caíram e que, por estarem já bem maduros, são também muito mais saborosos… E dizia esse alguém que, se calhar, também por isso é que os de Emaús teriam também feito a experiência Pascal… Por estarem cabisbaixos!!! Pois hoje, terá sido a minha vez. Porque desde que atirei o meu olhar contra os meus próprios pés que se vão arrastando nesta caminhada, ainda não levantei, por uma vez sequer, as meninas dos meus olhos… E é assim que vou fazendo a tal experiência… Por estar cabisbaixo, vou lembrando a cada passo dado, os figos maduros que me foste deixando… São uma espécie de pequenos retalhos do “melhor de ti” que foste deixando e que recordo agora ao colocar uma espécie de espelho retrovisor nas minhas memórias… E são muito mais coisas do que aquelas que julgarias; mais até do que eu próprio julgava… E olha que eu já sabia serem muitas!!!!
E lembro-me…. Lembro-me que precisei de ti por algumas vezes e que, por isso, te fui pedindo algumas coisas… E lembro-me da resposta ser sempre um “sim” dito de forma carinhosa… Mesmo que fosse preciso alterar alguns planos para me “fazer o jeito”… Lembro-me de quando te conheci, numa altura em que se “brincava” aos festivais da Canção aqui em Rossas e de, já aí, ainda muito nova, teres feito talvez a melhor canção que se fez nesses festivais: “Melodia de Esperança”! Talvez não saibas que este ano, enquanto dei aulas de Música nas escolas primárias de Grijó, utilizei essa tua música para cantar com algumas turmas na festa de Natal… E lembro-me (até porque me vai acompanhando enquanto escrevo estas linhas) de quando ouvi “Mim” pela primeira vez num gesto que tenho também que agradecer ao nosso amigo Ivo. Jamais esquecerei... E lembro-me do grande orgulho de te ver na televisão; primeiro, no “Chuva de Estrelas”, onde o Pedro depois me contou todos os pormenores de tão marcante dia; e, depois, quando cantaste com a Elisabete no programa do Herman. Talvez não saibas que tenho isso gravado para rever quando me der vontade. E lembro-me de ficar satisfeito ao saber do enorme sucesso dos D’Arc por esse Portugal fora e dos prémios conquistados… Porque tenho muito orgulho em ti. Mesmo não te sendo muito próximo. Porque foste também a voz de Arouca. A nossa voz… A minha voz… Tenho ainda bem presente o sabor da tua voz quando, em Dezembro, cantaste com a minha Banda Musical de Arouca onde eu tentei não estragar, dando meia dúzia de notas singelas no meu clarinete, no meio de todos os outros…
Por estranha curiosidade, quando recebi a triste notícia da tua “partida”, estava a tocar…A tentar ser um músico melhor… Sim, estava a tocar clarinete, na casa de ensaio, com o Valdemar… Foi ele que deu o teu nome ao “corpo” que eu tinha visto estendido há umas horas atrás numa notícia trágica na televisão… E lembro-me… E lembro-me…
Bem… Os sapatos já há algum tempo se afastaram do alcatrão. Entre estes episódios, muitos outros se foram metendo pelo meio durante a caminhada… Agora, por momentos, sintonizo o meu coração mesmo aqui ao lado… Mesmo há pouquinho, a tua mãe chamou por ti num grito… Por momentos lembrei-me de um outro grito que até fez o “véu do templo rasgar-se em dois”. Perdoa-me, mas soltei um “imperceptível” sorriso recordando-me do enorme significado da expressão… A morte não vence, pois não?!!! Eu sei disso. Estou certo de que tu também…
Não tenho jeito para despedidas… Queria apenas dizer-te para não olhares este texto como um exercício de memória… Não!!! Olha-o antes como um sentido exercício de “coração”. A gente vai-se encontrando por aí…
Como diria o Sérgio Godinho: “…Vem-me à memória uma frase batida: Hoje é o primeiro dia do resto da tua Vida”…
Miguel Brandão
4 comentários:
Pois..., a Nádia era tudo isso que disseste. Sempre disponível para os amigos.
Obrigado pelo abraço de solidariedade e amizade que me deste, por te lembrares de mim, por estares do nosso lado, por te lembrares da Nádia.
Recorda a nossa primita com esse sorriso que falaste quando a "Melodia de Esperança" entoar nas tuas salas de aula. Ela vai ficar muito feliz.
Rubens e Belinha
...Parece impossível como certas coisas acontecem... é de arrepiar...
Fica a lembrança da sua voz, do seu sorriso carinhoso e do seu jeito meigo...
"...o anjo tomou a palavra e disse às mulheres: Não está aqui!" (Mt 28,6)
Todos os renascimentos para uma outra forma de vida que desconhecemos marcam-nos sempre muito porque nos falam da fragilidade e até do absurdo aparente da vida humana... Acho que ver o nascimento "prematuro" de uma pessoa da nossa idade marca-nos ainda mais porque nos consegue pôr tão facilmente lá, no lado interior da vida. Vem-me uma fome de transcendência que tento saciar com fé e que me fala de "não está aqui" porque está num outro lugar a que chamo eternidade, onde seremos eternamente a vida humanizada que fomos capazes de construir e onde, por isso, não deixo de ser e "Eu sou aquele que sou" (Ex 3,14). Só esta "Melodia de Esperança", que é a fé, pode preencher por agora os silêncios deixados pelo absurdo.
Apesar de tantos absurdos, gosto de acreditar que fazemos parte de uma história com sentido.
Odete Teixeira
Quase um ano depois, descobri este magnífico texto... só quero dizer que, apesar do tempo, que para mim não passou, foi difícil conter a lagrimazita que teimou em soltar-se!é como, realmente, hoje ainda fosse o primeiro dia!
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