Um adeus à Universidade de Aveiro

Tudo começou há cinco anos atrás.
Os tempos de conservatório há muito tinham passado. Depois de muitos anos sem estudar música decidi aventurar-me num sonho antigo. O desejo de alargar os horizontes do saber falou mais alto e, quando dei por mim, estava em Aveiro numa “aula aberta” de composição a ver se o sonho tinha pernas para andar. Foi aí que conheci a Sara, aquela que eu ainda não sabia, mas que haveria de ser a minha professora de Composição Livre ao longo de cinco preciosos anos e que foi o meu principal apoio ao longo de todo este percurso. Aquilo a que nas escrituras chamam de “pedra angular”.
A Odete foi a principal impulsionadora de tudo isto e, assim que a decisão de fazer os pré-requisitos foi tomada, aconselhei-me com o amigo Ivo que deu o pequeno empurrão que faltava a quem já ia mesmo no fundo da descida do sonho.
Não foi um início fácil. Apesar do 15,4 na prova de admissão, como concorria como titular de um curso superior (Matemática), as vagas eram “diferentes”. Foi assim que as coisas não correram bem logo à primeira tentativa. Éramos vários candidatos nessas circunstâncias pelo que não fui o selecionado para a única vaga existente. Tive de adiar o sonho por mais um ano. E assim foi. Voltei a repetir a prova (embora a nota não contasse absolutamente para nada), desta vez com direito a um 17,4. Felizmente as vagas eram em maior número e consegui ter acesso à frequência da Licenciatura em Música – Composição.
Quis o destino que as minhas companheiras de aventura fossem todas meninas. Juntaram-se a mim, nesse primeiro ano de Composição, a Filipa, a Sveta e a Daniela. Mesmo em DTFM, cujos alunos de 1.º ano tinham bastantes aulas apenas connosco, também eram só meninas. Como o mundo é pequeno, uma delas, vim a descobrir pouco depois, era neta do Sr. Mário de Urrô, por isso, gente de bem. Havia também os colegas de composição de outros anos que tão bem nos acolheram. E haveriam ainda de surgir os colegas de composição nos anos seguintes, como o Tota, o Zé, o Lucas ou a Patrícia.
Nunca esquecerei o meu primeiro dia na Universidade, com uma aula de coro com o Prof. Lourenço (um joia como professor e como pessoa) e com uma aula de Leitura Atonal com o Prof. Vasco Negreiros, a pessoa mais rigorosa que conheço no que diz respeito a horários e afinação. O que eu muito admiro e que me fez aproveitar ensinamentos para a vida. Muitas das suas histórias cómicas ainda estão na minha memória.
Não posso agora enumerar todos os episódios que me recordo. O texto ficaria incrivelmente longo e perderia grande parte do pouco interesse que, por si só, já desperta. Mas há alguns momentos ou pessoas que gostaria de recordar aqui.
A pessoa com quem mais aprendi chama-se Daniela. Mesmo tendo cometido a pequena traição de ao fim de um ano se mudar para a equipa dos pianistas. Uma pessoa que aprendi a admirar e que fez com que este meu trajeto corresse de forma mais natural e menos solitária. Mesmo quando foi para Itália. Vou ter saudades das nossas conversas. Foram poucas, mas foram boas.
É impossível não lembrar o Jean-Claude van Damme da música eletrónica: o grande professor Filipe Lopes. Ele, que muito carinhosamente nas aulas me chamava Brandão (“É verdade ou é mentira?”). O verdadeiro John McClane do mundo da música.
O dia em que fui jantar com outros colegas de Arouca a casa do professor Evgueni também deixou marcas. Não foi fácil chegar a casa nesse dia. Como se costuma dizer, eu bem me encostava à parede mas ela não parava quieta... Eheheh!
Lembro também a primeira edição do “Sons do Imaginário” onde foi estreado o meu “Bailado” para piano solo. Lembro-me de levar doces conventuais de Arouca para o público se ir entretendo no intervalo. Felizmente há um registo em vídeo dessa interpretação.
O Sérgio foi também um ótimo colega, um rapaz extraordinário que me passou “resmas de gigas” de bancos de sons para usar no meu mac ao fazer música.
Há também o Sr. Veiga, o Sr. Vítor e o Sr. João e, principalmente, a D. Conceição que partiu cedo demais e que me perguntava frequentemente pelos meus pequenotes enquanto limpava o Auditório mesmo antes de uma aula de Projetos Multidisciplinares.
Lembro também o primeiro trabalho de grupo em que me vi envolvido, sobre a obra “Vathek”, com colegas que deixam muita saudade.
Há ainda as aulas partilhadas com o amigo Daniel, um conterrâneo que fez por estes dias o seu Recital de Mestrado. Um orgulho para todos os arouquenses.
Como trabalhador-estudante, o percurso foi muito acidentado e cheio de dificuldades. Com a Área Vocacional repartida por todos os dias da semana e com presença obrigatória, era impossível, a quem não se pode deslocar todos os dias à universidade, fazer melhor. A aprovação em muitas das disciplinas foi conseguida sem ter sequer frequentado uma aula. Isso exigiu uma maior preparação e dedicação em casa. Por isso é lembrado com um sorriso suave o 20 conseguido a História, por exemplo, mesmo sem ter assistido a uma única aula.
Deixa também muita saudade o processo de composição da minha peça “Reborn” para trompete. Foram dias a testar sonoridades com o amigo Fábio cujo resultado final acabou por ser bastante satisfatório.
A quem estarei também eternamente grato será ao Romeu que deu vida à minha “Drave” para guitarra, talvez a peça que me é mais querida. E aquele dia em que o Berény quis que eu ouvisse a sua interpretação da minha “Zigurat” para guitarra também me marcou. Pudesse eu ser também assim enorme e era um homem feliz.
Lembro também a oportunidade que tive de atuar em pleno multiusos de Gondomar com uma banda de tributo aos Queen onde tive o privilégio de tocar “campainha” na Bicycle Race, honra que devo à amiga Inês que será um dos rostos que ficará gravado na minha memória para sempre. Também pela sua beleza mas, sobretudo, porque parece também apreciar a boa música dos Queen e isso, claro está, revela muito bom gosto.
Há também aqueles colegas que aprendemos a admirar e que tentamos seguir como modelo desde o primeiro dia. Por isso o Bernardo fará sempre parte das melhores memórias e serei sempre um seguidor atento do seu percurso.
Foi bom também o dia em que soube do meu prémio num concurso de composição que me levou até à Gulbenkian em Lisboa onde encontrei também gente conhecida. Esse modesto prémio fez com que a minha foto aparecesse também no “muro da fama” da universidade junto de outros colegas premiados, esses sim, com um valor enorme.
Há também memórias de alguns jantares (eu sei que não fui a muitos) onde a animação reinou, e de que maneira.
Ao longo destes anos foram muitas as viagens para Aveiro em conjunto com os meus sobrinhos ou com outros amigos de Arouca que tive o prazer de transportar no meu carro e que ajudavam a que as viagens passassem de forma mais animada.
Uma das memórias que mais se entranhou em mim foi aquele dia em que me disseste: “És uma pessoa boa”. Porque isso é o que realmente tem valor e foi a principal lição que recebi, desde cedo, dos meus pais. Lembro-me de te ter dito que o meu segredo era ser feliz com pouco, embora também fosse capaz de ser feliz com muito. E sorrimos.
Não posso deixar de agradecer também às minhas entidades patronais que desde a primeira hora, dentro do razoável, me deram liberdade para moldar o meu horário por forma a conseguir frequentar as aulas mais importantes. Por isso, é justo deixar aqui um agradecimento público à Dra. Isabel Bessa que trago no meu coração, à Prof. Teresa Miller que tanto apoio me deu desde sempre, ao Prof. Edgar por todo o incentivo e disponibilidade e ao Prof. Sérgio Carvalho por toda a compreensão, mesmo quando me via pelos corredores da Academia com calhamaços de livros a estudar. Os meus colegas de trabalho, primeiro na Biblioteca Municipal e depois na Academia de Música, também foram muito importantes pois demonstraram sempre disponibilidade total para me substituir quando necessitava de deslocações extra à Universidade.
Muitos outros mereceriam ser mencionados. É impossível agradecer aqui a todos os que fizeram parte deste meu discreto percurso.
Para o fim deixo três agradecimentos especiais.
O primeiro vai para a professora Sara Carvalho. Mais do que uma professora, foi um pilar importante neste meu percurso universitário. Compreendeu a minha condição de vida e ajudou-me muito neste sonho que não foi fácil mas que, felizmente, chegou a bom porto. Estarei eternamente grato por todos os sábios ensinamentos que me deu. É com uma satisfação especial que vejo que a minha última aula na universidade foi uma aula de composição no dia 5 de julho às 18h30. Felizmente, tive oportunidade de fazer este agradecimento sincero, pessoalmente. Uma boa forma de concluir o meu percurso universitário.
O segundo agradecimento vai para os meus pais. Este, para além de meu, sempre foi um sonho da minha mãe que não percebe nada de música. Devo ao meu pai quase tudo do que são as minhas bases musicais. Foi ele que me iniciou no estudo do piano com aulas diárias lá em casa. Tenho a certeza que é um orgulho para eles eu ter concluído esta etapa, mesmo que tenha sido já à porta dos 42 anos. Mesmo que a minha mãe esteja agora à mercê do Alzheimer e, muito provavelmente, esqueça essa boa nova um minuto depois de a ter recebido.
O último agradecimento vai para a Odete e para os meus três filhotes.
A Odete foi a principal responsável por eu ter tido a coragem de perseguir este sonho. Voltar a estudar aos 37 anos, depois de uma licenciatura “das antigas” em Matemática, depois de ter sido professor, depois do “desemprego”, depois de ser funcionário na Biblioteca e, mais tarde (e que ainda se mantém), auxiliar de educação educativa na Academia de Música de Arouca, e depois de três filhos maravilhosos que merecem um pai a tempo inteiro, revelou-se um desafio muito maior do que seria de supor, à partida. Não fosse o enorme apoio da Odete que, diga-se em nota de rodapé, ainda me incentivou a prosseguir para o Mestrado, e eu nunca teria conseguido. No entanto, o Mestrado pode esperar. Muito provavelmente, vai esperar a vida toda. A minha família merece um pai presente e, no sentido inverso, eu também mereço a minha família. Gosto muito de brincar. Vai ser bom voltar a fazê-lo de forma completamente livre.
Muito obrigado, Odete.
Agora é aproveitar o tempo livre que vai surgir, também para compor. É aproveitar o não ter de ir trabalhar das 9h às 22h com uma hora de almoço e outra para jantar para conseguir um dia livre para ir à universidade. É tentar conseguir um horário em que se chegue a horas decentes a casa, ainda a tempo de brincar com os filhos.
Mais uma etapa concluída na minha modesta vida onde aquele menino que no 6.º ano teve nota 5 a todas as disciplinas com exceção de trabalhos manuais, é apenas um simples auxiliar de ação educativa, mas com a clarividência necessária para alargar o conhecimento. Porque esse, não ocupa lugar.
Agora, deixem-me ficar no meu cantinho e tentem não abusar da minha boa vontade. Porque eu também mereço um bocadinho de descanso.
As férias aproximam-se. Ainda bem. Há tantas coisas em lista de espera que vou aproveitar para fazer. Ouvir Queen com o som no máximo é uma delas.
Um obrigado a todos os que não foram mencionados mas que, de uma forma ou de outra, fizeram parte deste meu percurso. A todos estou muito grato.
Até já.

Miguel

1 comentários:

curva dos grilos disse...

Olá,
Gostei particularmente desta parte: "Uma das memórias que mais se entranhou em mim foi aquele dia em que me disseste: “És uma pessoa boa”. Porque isso é o que realmente tem valor e foi a principal lição que recebi, desde cedo, dos meus pais. Lembro-me de te ter dito que o meu segredo era ser feliz com pouco, embora também fosse capaz de ser feliz com muito. E sorrimos."
Sinceramente, tenho receio e até me custa fazer um comentário acerca de alguém tão enorme como tu pah! De ti apenas conheço um pouco daquilo que tornas público, mas é evidente que és uma pessoa boa, amiga, pura, próxima, presente, verdadeira. Sempre tive essa impressão de ti. És um talento. Pessoas como tu fazem falta nos sítios certos, naqueles que somente são ocupados por tipos com filiação partidária e que, passados 8 ou 12 anos, já têm direito a subvenções vitalícias.
És o auxiliar de acção educativa mais erudito que eu conheço.
Parabéns pelas tuas conquistas.
Um abraço deste moço de Nogueiró!